Em janeiro, participei de um evento produzido no Centro
Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro), que neste momento está em cartaz no
CCBB de São Paulo, e deve seguir depois para Brasília: Terry Gilliam – O Onírico Anarquista. O evento é produzido pela BLG Entretenimento, com
curadoria de Christian Caselli e Eduardo Reginato, e fica no CCBB-SP até 2 de
maio.
Fiz uma “Aula Magna” online (que infelizmente não está na
web) e contribuí para o catálogo com uma avaliação do filme O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus.
Como a palestra não foi vista por muita gente, aproveito
para compartilhar aqui alguns dos temas sobre os quais conversamos por duas
horas.
Terry Gilliam é um estadunidense apóstata, que chutou o
balde da cidadania dos EUA e tornou-se cidadão britânico. Ele sempre foi mais
europeu do que norte-americano, assim como Isaac Asimov sempre foi mais
norte-americano do que russo. A formação cultural de Gilliam, meio eclética,
meio desorganizada, acabou tendo o efeito colateral de aproximá-lo mais da
cultura européia do que da do seu país. Seus filmes e sua trajetória pessoal
refletem isso.
Os adjetivos mais frequentes para descrever o cineasta
são exagerado, “over”, gastador, complicado, exuberante, caótico... E ao mesmo
tempo fascinado pelo absurdo, pelo nonsense, pelo fantástico, pelo
sobrenatural, pelo grotesco, pelo mórbido.
(Time Bandits)
Seus filmes são concebidos de fora para dentro, das
imagens para a psicologia, do exterior surpreendente para o interior
imprevisível. O ambiente, a cenografia, os figurinos, tudo parece mais real do
que a mente dos personagens, que só raramente são tratados com um detalhamento
psicológico realista, do tipo que o cinema habitualmente faz. Gilliam pensa por imagens, não por conceitos
abstratos.
Seus diálogos em geral não têm muito brilho, sutileza,
originalidade. São meramente funcionais, servem para dar realismo à cena (“o
que pessoas de verdade estariam dizendo num momento assim?”), para encaminhar o
enredo, dar informações, exprimir emoções simples. Ele gosta de soltar os
atores para improvisar suas falas. O que lhe importa é o movimento do storyboard, as linhas digitadas são uma
formalidade necessária.
Fala-se que muitas cenas do Dr. Parnassus com Heath Ledger não teriam entrado na versão final,
porque não ficaram muito boas, mas depois da morte do ator Gilliam decidiu
aproveitar ao máximo o material que ele tinha filmado. A cena dos dois casais
no restaurante chinês, em O Pescador de
Ilusões, foi totalmente improvisada, e a edição picotada valorizou os
trechos mais engraçados.
(O Pescador de Ilusões)
Como acontece com diretores de temperamento visual, seus
filmes são muitas vezes uma sucessão de “set
pieces”, cenas que valem por si mesmas sem que necessariamente haja uma
relação de causa e efeito entre elas. Gilliam daria um excelente carnavalesco
de Escola de Samba, porque criaria umas vinte alas de brilho excepcional, sem
se preocupar muito em contar uma história – o enredo tanto poderia ser “A Busca
do Eldorado nas Américas” quanto “A Construção de Brasília”.
Isto faz com que, em termos de enredo, ele tantas vezes
aborde os romances populares que não se preocupam com aprofundamento
psicológico, e consistem numa série de aventuras semelhantes que poderiam ser
acumuladas indefinidamente, como as do Barão
de Munchausen, os contos dos Irmãos
Grimm, as peripécias do Dom Quixote...
Mesmo quando existe um objetivo final na jornada (como em Bandidos do Tempo, Jabberwocky,
etc.) quando ele é atingido acaba sendo quase um anticlímax, porque entendemos
que a festa acabou. A festa é a “travessia”.
(Jabberwocky)
É a velha estrutura da Novela de Cavalaria, episódios
sucessivos sem desenvolvimento orgânico entre si, sucessão de aventuras, como
se fossem contos. Estrutura resultante de milênios de compilações de lendas e
contos populares justapostos, desde as Mil
e Uma Noites até os Contos de
Canterbury, e que começaram a receber a partir do século 17-18 um
tratamento mais refinado (O Manuscrito de
Saragoça, Jacques o Fatalista, Tristram Shandy etc.) até desembocar no
romance moderno, que se apoia em enredos sólidos, consecutivos, onde tudo que
ocorre influi em tudo que ainda vai ocorrer.
Gilliam é um diretor visionário, meio delirante, e não é
de admirar que as filmagens de seus projetos sejam aventuras cheias de
acidentes, prejuízos, contratempos, conflitos, rompimento de contratos, mudança
imprevista de planos...
É locação interditada em cima da hora, é surpresa
meteorológica, é greve de uma categoria, é incêndio de cenário, é ator que
morre durante a filmagem, é produtor que some com a grana... Como se diz por
aí, no mundo caótico do cinema o surpreendente não é que um filme resulte em
algo bom, é que qualquer filme acabe
sendo feito.
Mesmo assim, ele tem um núcleo de técnicos e atores que
embarcam sem hesitar nessas “roubadas”, certamente porque veem nele a
sinceridade e a vibração dos que estão focados na vertigem de criar. Para quem
trabalha com cinema, os filmes dele talvez sejam mais interessantes de filmar
do que de ver na tela. Ver um filme dele é como ver as fotos de uma festa que durou três dias e onde
rolou de tudo, até briga.