O Netflix está exibindo uma série, Taboo (uma temporada, 8 episódios), com uma mistura eficaz de violência, sutileza psicológica, brutalidade colonialista, intriga política, espionagem, tecnologia proto-steampunk, magia primitiva.
Em Taboo, ajuda
bastante o fato de que o protagonista, James Delaney (Tom Hardy) é um desses
indivíduos marcados pelo signo de Caim. Um homem fechado em si mesmo, com
poucos escrúpulos, implacável, incomunicável, empenhado numa vingança pessoal e
numa cartada política internacional capaz de render fortunas – um homem que
nada revela do que está pensando. Só vamos entender daqui a algum tempo.
Delaney volta a Londres para o enterro do pai, um homem
rico, poderoso, excêntrico; e para reaver, na qualidade de primogênito (ele tem
uma meia-irmã londrina, interpretada por Oona Chaplin, com quem mantém uma
relação heathcliffiana) uma faixa de terra entre os EUA e o Canadá, faixa de
importância vital para o comércio de chá (e de produtos menos anunciáveis)
entre a China e o Ocidente.
Não demora para Delaney estar lutando sozinho contra a
Coroa Britânica, representada por um Príncipe Regente ( o futuro rei George IV)
retratado em tintas afetadas e bobonas, não muito diferentes das que o cinema
brasileiro tem usado para descrever D. João VI.
É
um pouco o que em literatura policial se chama de “o gambito Red Harvest”, criado por Dashiell
Hammett no livro com esse título, e depois muito explorado em outras histórias
(a mais famosa creio ser Yojimbo, de
Akira Kurosawa).
Você é fraco? Está enfrentando um grupo de fortões? Faça
com que eles se destruam mutuamente. Fortões adoram destruir-se mutuamente.
Sentem mais prazer com isso do que destruindo um fracote como você, um bebum que
nem navio tem.
Delaney é interpretado por Tom Hardy, especialista em
papéis com muita presença física e poucas palavras (Mad Max Fury Road, The Dark
Knight Rises). E não há como não ver nele a energia surda e brutal que o
ator injetou em seu Mad Max e principalmente em seu Bane, criaturas meio primais, meio
trogloditas, radioatividade pura represada num vórtice de ambição e vingança.
O pulo-do-gato do personagem (que aliás foi concebido
pelo próprio ator e por seu pai, o romancista Chips Hardy) é que Delaney não é
um mero Max Rockatansky ou Bane. É um enxadrista político. Um chantagista
sênior. Aquele anti-herói na tradição de Rocambole ou Lupin, que mesmo condenado à guilhotina é capaz de trazer a sua masmorra um Ministro, que
negocia com o presidiário e sai dali com o rabo entre as pernas.
Um típico anti-herói de folhetim, sem o sentimentalismo
do folhetim. Tornado plausível por um viés ético e amoral que nos são
totalmente contemporâneos. É o império da luta político-econômica dos grandes
conglomerados, onde valem palavras de ordem como “quem for podre que se
quebre”, “foi ferido está morto” ou “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Quando li a respeito da série, vi Tom Hardy citando,
entre suas influências na criação do personagem, Sherlock Holmes. E, sim, ele
faz bom uso dos seus “irregulares-de-Baker Street”, e guarda suas deduções para
si mesmo até que chega a hora de agir.
Também citou Marlow, o narrador de O Coração das Trevas de Joseph Conrad. Este lado é o mais interessante. Quem leu o livro de
Conrad lembra do seu narrador, o inglês equilibrado e profissional que navega
Rio Congo acima para checar as atividades de um tal de Kurtz, de quem se diz
estar aprontando horrores com os nativos; ele o faz, e volta abalado para
sempre.
De fato, James Delaney viveu na África, viajou em navios
negreiros, foi co-responsável pela morte de escravos, submeteu-se a rituais
mágicos (que explicam inclusive sua resistência aos espancamentos e torturas
físicas que sofre ao longo da série). Ele tem um pouco de Marlow, um pouco de
Kurtz. É um indivíduo que viveu os horrores do colonialismo lá longe, nas
periferias do colonialismo, de onde não chega notícia alguma na capital. O que
chega são indivíduos como ele, transtornados, vingativos, transformados em
máquinas de destruição do sistema que os produziu. E que eles destroem, mas não
têm alternativa senão substituir; e replicar.