Os violentos precisam da violência alheia, para
justificar a sua. Claro que eles mesmos podem dar início às hostilidades; mas...
se o contexto é minimamente civilizado, sempre é prudente poder alegar legítima
defesa. É um dos pretextos mais nobres para estourar os miolos de alguém.
É o princípio básico do western americano. Nos famosos duelos na rua vazia, com dois
pistoleiros caminhando devagar um na direção do outro, a regra é clara. Quem
sacar primeiro é o agressor, portanto perde a razão. A razão passa a ficar do
lado de quem, em legítima defesa, saca depois. O segredo, portanto, é ser mais
rápido no gatilho – sacar depois, e atirar primeiro.
Eu entendi isso aos dez anos de idade, vendo faroeste nas
matinais do Babilônia, comendo castanha confeitada, batendo com os pés no chão
e gritando, e todo mundo fazendo a mesma coisa.
No livro A Linguagem
Secreta do Cinema (Ed. Nova Fronteira, 2006), Jean-Claude Carrière faz uma
análise minuciosa (pág. 97 e seguintes) desse clichê do duelo dos pistoleiros, mostrando
o emaranhado de improbabilidades que ele envolve. É preciso que um saque
primeiro, e que o outro atire
primeiro. Uma decisão que às vezes depende de um fotograma.
Luís Buñuel, o grande parceiro de Carrière, era um
aficionado das armas de fogo, e diz-se que o hábito do tiro ao alvo contribuiu
para aumentar na velhice a surdez que já o incomodava desde cedo. Gostava de
atirar. Não tinha preconceito contra as armas. Seus filmes surrealistas gostam
de provocar o público com cenas de tiroteios gratuitos e fuzilamentos
descontraídos.
Esse mesmo Buñuel se confessou, mais de uma vez,
estarrecido com a propensão dos mexicanos para a violência armada e o
assassinato por bobagens. Ele foi morar no México com mais de 40 anos, e viveu
ali até o fim da vida.
Seu filme mais voltado para esse tema é O Rio e a Morte (“El Rio y La Muerte”,
1954). Não é um dos seus melhores filmes dessa fase, mas é um filme que ajuda a
rastrear essa tendência do México a ser um dos países mais violentos do mundo.
El Rio y la Muerte
fala de um povoado à beira de um rio largo e vagaroso. Uma enchente do rio
destruiu a vila. Ela foi reconstruída na margem oposta, mas o cemitério permaneceu
lá. Agora, a cidade vive dividida entre uma rixa sangrenta entre as duas
famílias principais. Quando morre alguém nas “vendettas” familiares, o
assassino cruza o rio a nado e se refugia no mato (os Anguianos) ou numa
montanha próxima (os Menchaca). E depois da fuga o morto faz a mesma travessia
do rio, de canoa, para ser sepultado.
É uma geografia simbólica interessante, essa que coloca a
vida normal do vilarejo numa margem, e na outra o local onde os mortos são
enterrados e seus matadores se escondem.
O filme está aqui, no YouTube (em espanhol, sem
legendas):
https://www.youtube.com/watch?v=P5550SYIM2Q&t=347s
Há poucas imagens típicas de Buñuel no filme. Um foragido
abre a carta da noiva usando um facão. Depois de marcar com ela um encontro
clandestino, à noite, ele chega. Os dois se abraçam. Corta para um galo
cantando, cercado de galinhas. O casal entra no mato...
A maior parte do filme, a parte do meio, ocorre num flashback. Gerardo Anguiano, filho
de um homem morto pela guerra de famílias, é um médico jovem que mora na
capital, e não quer se envolver com vinganças, o que decepciona sua mãe, cujo
marido foi assassinado. É curioso que nesse vilarejo as mulheres são grandes
incentivadoras do machismo, e obrigam maridos e filhos a andar armados. A mãe
de Gerardo, D. Mercedes, ao discutir com um amigo da família, desabafa: “Você sempre foi um covarde, como todos da
sua família. Se não tem a honra de se defender, vá para casa e vista uma saia.”
Gerardo tem um problema de saúde, está em tratamento num
“pulmão de aço”, e ali recebe a visita do seu inimigo Rômulo Menchaca, que vem
provocá-lo a um duelo quando for ao vilarejo. Menchaca se irrita com o
pacifismo do outro e o esbofeteia. Depois pede desculpas por bater num homem
indefeso, mas o desafio ao duelo fica de pé.
O filme é quase didático na sua mensagem
anti-armamentista, o que desagradava Buñuel: “É meu único filme que defende uma tese moral, algo que me deixa incomodado.”
No livro em que discutiu sua obra com os jornalistas José de la Colina e Tomás
Pérez Turrent (Objects of Desire, na
tradução inglesa), ele comenta, no capítulo 15:
Eu queria acima de tudo ter a chance de mostrar uma tradição autêntica
do litoral da região de Guerrero: quando alguém é assassinado, o caixão é
levado de casa em casa da família do morto, onde todos bebem. Depois levam para
a frente da casa do assassino, que já fugiu, e os parentes do morto gritam:
“Apareça, filho dessa, filho daquela! Venha pagar pelo seu crime!...”
Há uma cultura da morte “por dá cá aquela palha”, o que
aparece na sequência inicial, num batizado, quando dois compadres bebem e juram
amizade, um deles diz uma piada boba, e o outro o mata com uma facada no
estômago. Nas suas memórias (Meu Último
Suspiro, Ed. Nova Fronteira, 1982, trad. Rita Braga), Buñuel explica:
Essa atitude “viril”, e consequentemente a situação da mulher no México,
tem uma origem espanhola que é inútil negar. O machismo procede de um
sentimento muito forte e vaidoso da dignidade do homem. É extremamente
melindroso, suscetível, e não há nada mais perigoso do que um mexicano que nos
olha calmamente e nos diz, com voz suave, porque, por exemplo, recusamos beber
com ele uma décima tequila, uma frase sempre perigosa: “ – Me está usted
ofendiendo. (O senhor está me ofendendo)” Em situações como essa é melhor
beber o último copo. (pág. 292)
Há um culto à honra, sempre fragilíssima; às vinganças
longamente amadurecidas e anunciadas; à violência estapafúrdia e grotesca. Um
diálogo do filme diz:
– Me lembro quando Pablo Codina entrou a cavalo no velório de Anselmo
Lepe, cortou a cabeça do morto, amarrou-a e levou-a para a cantina.
– Sim, mas a família do morto foi à cantina e esfolou Codina.
O filme tem um desfecho meio forçado. Os dois desafetos
(um de terno e gravata, o outro com roupa de vaqueiro), depois de vários
encontros e escaramuças, se abraçam e selam a paz. Um final tão forçado quando
o de La Hija del Engano (1951), onde
o diretor parece mais uma vez se curvar à tradição latino-americana do final
melodramático, lacrimoso e feliz, onde “o importante é a família ficar unida”.
O México brutal de Buñuel nos anos 1950 é o mesmo México
contemporâneo de Roberto Bolaño com 2666
ou de Cormac McCarthy e os Irmãos Coen com Onde
os Fracos Não Têm Vez. Uma civilização onde se porta o revólver com a mesma
inocência com que um sertanejo porta a peixeira.
Nos velhos tempos do surrealismo parisiense, circulava
entre a turma de Buñuel e André Breton o dito de que “o ato surrealista mais simples
seria empunhar um revólver e sair pela rua disparando a esmo, abatendo
pessoas”. Parece que alguns anos de México e de vida real curaram o diretor
espanhol desse impulso juvenil.