O que seria o mundo, sem regras? Um paraíso. O que seria
o mundo, sem regras? Um inferno.
Estou dizendo “uma regra” no sentido de: “Uma lei, uma
ordem, uma determinação estabelecida por uma instância superior, com o objetivo
de equilibrar, harmonizar ou padronizar diferentes comportamentos coletivos”.
Regras foram feitas para serem obedecidas, mas sem muito
fanatismo. E podem ser desobedecidas, mas nos limites do bom senso.
Penso nisso quando lembro uma história que alguém me
contou, de quando estava numa cidade da Suíça. Era madrugada. Rua deserta,
silêncio total, e um pedestre veio pela calçada, a única pessoa à vista, parou
na esquina e ficou esperando durante quase um minuto até o sinal de trânsito
ficar verde para o pedestre. Então, atravessou.
Isso é certo? É errado?
As regras de trânsito me parecem um bom exemplo de regras
de comportamento coletivo. Precisamos delas para controlar o caos que é o
deslocamento de veículos e de multidões, ao mesmo tempo, em espaços restritos. Quando
todo mundo quer passar com o carro ao mesmo tempo e todo pedestre quer atravessar
ao mesmo tempo, há mortes, acidentes, tudo que não presta.
Alguma regra de trânsito teve que ser inventada, para que
as pessoas não fossem mortas por colisões de bigas, charretes, carruagens,
tílburis, cabriolés, automóveis.
Não é vergonhoso obedecer a uma regra coletiva; isso não
faz de nós robôs nem zumbis. Não é vergonhoso desobedecê-la, quando achamos que
ela é desnecessária ou insignificante em certo momento.
Por “insignificante” entenda-se a situação do pedestre
suíço, citado acima. O semáforo está ali para proteger tanto os pedestres quanto
os carros, alternando suas passagens. Já que não vinha carro nenhum, era
insignificante o risco, e o cara podia atravessar sem perigo para ninguém.
Por que não o fez? Porque é um europeu burro, bitolado,
massificado por um Estado totalitário? Não. Talvez fosse apenas um cara com
alma de boêmio e olhos de poeta. Estava sem pressa. Parou porque quis. Esperou
porque achou bom. E ficou conversando mentalmente com as luzinhas do semáforo,
coitadas, que estavam piscando suas cores inúteis na madrugada gelada de
Zurique.
Eu vejo mais propósito nessa atitude dele do que na
minha, quando atravesso correndo a Avenida Presidente Vargas às três da tarde,
cruzando seis pistas de carros que passam por mim a toda velocidade, espremendo
buzinas e gritando palavrões – simplesmente porque tenho preguiça de ir até a
esquina, aguardar um minuto e atravessar na respectiva abbeyroad.
Acontece algo parecido – por um exemplo, entre muitos –
com as regras do futebol.
Existem para definir limites, proibições,
obrigatoriedades, e com isso impor uma grade de regularidades e equivalências
no interior de uma disputa. “Regularidades” para que os dois adversário saibam
que toda vez que acontecer “X”, vai ser marcado “Y”; “equivalências” no sentido
de que as regras valem para todo mundo, sem privilégios.
O que acontece é que jogadores de futebol passam o jogo
inteiro forçando os limites da regra. São como pedestres teimosos, que
atravessam a rua dando drible nos carros, ou como motoristas impacientes que
furam o sinal vermelho porque têm medo de assalto, ou ciclistas que invadem o
espaço dos pedestres para se defender dos carros, ou pais que estacionam em
fila dupla diante de uma escola “só por um instantinho, não dá pra descer...” Enfim, todo mundo que viola a regra tem
excelentes motivações pessoais para isso.
Toda esta lenga-lenga é para abordar um assunto bem
diferente: as regras literárias. Existem regras na literatura?
Em princípio, não. Existem regras na gramática, na ortografia.
As regras servem para organizar o uso das conjunções e preposições, da
conjugação dos verbos, da grafia das palavras, etc. e tal. Mas isto são regras
da linguagem, não da literatura.
Na literatura o que temos não são regras – as quais, por
definição, são fixadas por grupos de especialistas designados pela sociedade. O
que temos na literatura são procedimentos consagrados, habituais, costumeiros.
Modos de organizar os textos para que o leitor os leia e os entenda com mais
facilidade. Não têm a ver com a arte literária. Servem praticamente para
qualquer texto.
Em muitos manuscritos antigos não há separação de
palavras, por exemplo. Era o modo de escrever daqueles tempos.
Aspalavrasapareciamtodasemendadasumasnasoutrasetodomundoliasemdificuldade.
Até que alguém teve a brilhante idéia do espaço em branco. (Acho que no tempo
do papiro e do pergaminho eles procuravam economizar ao máximo a superfície
onde escreviam.)
Os sinais de pontuação, a divisão do texto em parágrafos
e em capítulos, o uso de letras maiúsculas para indicar palavras especiais
(começo de frase, nome próprio, etc.), tudo isso foi se construindo ao longo de
séculos, mas não são regras, são costumes. Usa quem quer.
Tudo isto, no entanto, não pertence propriamente ao
domínio da arte literária, e sim da técnica de publicação de textos. São
universos que se interpenetram, se interseccionam, mas cada um tem seu próprio
regulamento.
A teoria da literatura é cheia de “regras”, mas essas pseudo-regras
são arbitrárias, são consensos estéticos a que alguns grupos de pessoas chegam,
combinam entre si, e passam a ensinar às outras. As “regras” narrativas que
valiam para os folhetins franceses na época de Alexandre Dumas não são
necessariamente as mesmas que valiam para a literatura policial norte-americana
no tempo de Dashiell Hammett, nem as que valiam para o romance histórico alemão
da época de Thomas Mann, ou a que valia para o conto brasileiro em seu
florescimento na década de 1970.
São regras? Não: são formas de dizer, de falar, de
contar, de exprimir, de sugerir através de palavras. Formas diferentes de
construir personagens, de reproduzir o que se passa na mente deles, de narrar
acontecimentos, de dialogar com o leitor.
Todo mundo conhece aquelas famosas listas: “Doze Conselhos
da Escrita por Philip Roth”, ou “Seis Maneiras Infalíveis de Contar uma
História, por Barbara Cartland”, ou “Os Dez Mandamentos do Escritor, por Balzac”
ou por quem quer que seja. São regras universais? Não, são dicas, são conselhos
onde um autor diz: “Olha, isto aqui funciona comigo, talvez funcione com você”.
Por outro lado, quando essas “regras” viram modismo,
maneirismo, rotina, logo aparece uma nova geração de autores e autoras bradando
que “daqui pra frente vai ser diferente” e instituem uma vanguarda, uma
renovação, seja lá o que for. O que é ótimo; isto é a respiração normal da
literatura. Novas vozes, novos olhares, novas maneiras de pensar e de dizer.
Não há regras? Ao contrário: há milhões de regras,
propostas por milhões de autores. Você escolhe as regras que quer seguir, deixa
as outras de lado. E se quiser, você propõe novas regras que por acaso estejam faltando.