(Jack Nicholson em O Iluminado)
Dizem que todo escritor de verdade sofre em algum momento
dessa Síndrome. Ela se tornou “sinônima” da profissão literária, e um escritor
que nunca tenha sofrido dela provavelmente é, ele sim, um impostor autêntico.
É aquela sensação agoniante, desesperada, de: “Eu não sou esse escritor talentoso e
inteligente que todo mundo vê em mim!... Eu sou uma fraude, uma mentira! Sou um
idiota e eles não percebem, estou aqui mentindo e não sei por que razão ganho
prêmios e faturo milhões de dólares!...”.
Nada mais natural, não é mesmo? E aqui pra nós, nem
precisa ser premiado e milionário. Qualquer poeta de 20+ anos lança seu primeiro
livro de 40 páginas, dá autógrafos para uma fila composta por primos,
ex-namoradas e colegas de faculdade, comemora no bar mais próximo, mas quando
apaga a luz e bota a cabeça no travesseiro os calafrios o acometem. “Por que eles acreditam que eu sou poeta?
Não sou poeta coisa nenhuma! Sou um fingidor!”.
Todo poeta é um fingidor, e o mais sincero deles deve ter
sido Raul Seixas quando dizia: “Eu não
sou cantor coisa nenhuma! Sou o maior ator brasileiro, porque finjo que
sou cantor e todo mundo acredita!”.
Quem nunca fingiu que era cantor e fez alguém acreditar,
que atire a primeira pedra rolante.
(Bob Dylan e Mick Jagger)
A Síndrome do Impostor é uma versão especializada de um
problema mais amplo: a má-fé existencialista. A consciência pesada do sujeito
que sabe estar fazendo uma coisa falsa, mas faz assim mesmo. Num caso extremo,
o indivíduo finge que é ele mesmo. Finge que é o Doutor Bouville, formado em
Ciências Jurídicas, pai de família, cidadão respeitável... Ele é isso tudo, mas ele principalmente representa esse papel; ele representa,
teatralmente, o personagem que um dia será homenageado com estátua em praça
pública.
É como aqueles bonecos gigantes do carnaval de Olinda.
Cada escritor vai pela vida afora carregando um boneco-gigante de si mesmo.
No caso de Jean-Paul Sartre, ser escritor era uma culpa
menor do que a de ser homem, de ser humano. O impostor não é quem escreve, é
quem meramente existe. E ele dava o pulo-do-gato de usar os livros como
desculpa, como justificativa. Comparava o ser humano no planeta Terra a um
sujeito que está viajando num trem sem ter comprado passagem. Ele sabe que está
fazendo algo errado, algo desonesto. De repente, aparece o condutor do trem e
lhe pede o bilhete. Diz Sartre: “Eu lhe mostraria os meus livros, e diria: Sou
escritor, estou na Terra com esta função.”
Talvez a angústia impostorial venha do fato de que todo
escritor, quando jovem, descobriu a própria vocação, ou julgou descobri-la,
quando estava lendo os primeiros autores que o impressionaram profundamente.
Grande parte do impulso de escrever vem do desejo de produzir em outras pessoas
o efeito que nos produziram as primeiras surpresas de Agatha Christie, as
primeiras iluminações de Rimbaud, os primeiros vislumbres cósmicos de Augusto
dos Anjos, os primeiros furacões épicos de Victor Hugo...
Foi deles que captamos a fagulha criadora, e é a eles que
tentamos emular quando escrevemos. A sensação de impostor nos vem justamente
naquele numerosos instantes em que percebemos que não somos nem de longe tão
bons quanto eles. A fagulha nos veio intacta mas, quando a passamos adiante,
ela é como um pisca-pisca de laser, que brilha mas não incendeia. Somos um
fracasso. Somos uma impostura.
Essa situação comporta dois lados. Em certa medida, todo
mundo tem consciência de que projeta imagens quebradas, incompletas, inexatas
de si mesmo. Ninguém conhece ninguém. Sendo assim, ninguém sabe como nós somos
de verdade. Quando alguém nos insulta, nos chama de canalha, otário,
fracassado, sacana, tudo-que-não-presta, sempre nos resta o consolo de dizer:
“Eu não sou isso aí!”, e sabemos que não somos.
O lado B dessa moeda é que quando nos chamam de gênio,
talentoso, íntegro, charmoso, etc., a vozinha surge do mesmo jeito, lá no sótão
do nosso juízo. “Eu não sou isso aí!” E
sabemos que não somos. A voz é a mesma, e a verdade é uma só.
Para mim, uma das grandes descobertas literárias do
século 20 foi a de Fernando Pessoa ao criar seus “heterônimos” e teorizá-los
extensamente, brilhantemente. Produzindo o que ele em alguma parte chama de
poesia dramática, ou dramatúrgica: uma poesia onde o poeta, em vez de glosar
seus próprios sentimentos, imagina um segundo poeta, imagina os sentimentos
desse segundo poeta, e escreve versos em nome dele – e quando mais diferentes dos
SEUS próprios poemas, melhor.
Fernando Pessoa, ao invés de ficar nervoso com a
impostura, assumiu-a e chamou-a de criação. Modesto, ele nem se arvorou
originalidade alguma, pois lembra que todos os grandes ficcionistas e dramaturgos
nunca fizeram outra coisa senão isto. Flaubert dizia: “Madame Bovary sou eu”, e
Shakespeare poderia dizer o mesmo de Lady Macbeth.
Sempre – sempre – haverá um vácuo enorme entre a imagem
positiva que os outros têm de nós e a pobreza existencial do que efetivamente
somos e sabemos. Todo sucesso é um mal-entendido. Todo fracasso também; mas o mal-entendido do
sucesso é mais doloroso, porque quando eu o compreendo, me desvalorizo.