sexta-feira, 30 de setembro de 2022

4868) O Universo conspira a meu favor (30.9.2022)




É um truísmo muito antigo, e foi popularizado por Paulo Coelho em alguns dos seus livros místicos. O seu teor é mais ou menos este: “Quando você se envolve na busca de um objetivo, o Universo inteiro conspira a seu favor”.
 
É uma frase muito lembrada sempre que acontece uma coincidência favorável. Vou na barbearia, tem um cliente na minha frente, entro numa livraria para enrolar meia-hora e acho o livro raríssimo que procurava há anos, e está por dez reais. Alguém me encarrega de um trabalho e penso em recorrer a um cara cujo contato perdi há muito tempo; na volta para casa, encontro-o no metrô e o problema está resolvido.
 
Paulo Coelho popularizou essa expressão, mas nos últimos anos já a vejo sendo substituída por “o algoritmo de Deus”. “Rapaz, eu precisava saber urgentemente o autor de uma citação que vi na época da Faculdade, liguei para várias pessoas, aí resolvi relaxar, peguei um livro policial... e lá estava a informação, porque o algoritmo de Deus não perde tempo.”
 
Cabe aqui, portanto, a indagação séria: é possível que o Universo inteiro conspire a favor de uma pessoa, para que ela alcance os seus objetivos? Ou isso não passa apenas de mais uma cenoura de otimismo pendurada diante das ventas de burros-de-carga como eu, para que eu continue “buscando o meu objetivo”, “me esforçando para superar os obstáculos”, “acreditando no meu potencial”, “conquistando meu espaço no mercado de trabalho” e outras receitas da escravitude empreendedorista?
 
Acreditar nisso significaria acreditar que esse Universo Conspirador possui consciência, possui vontade, possui poder de ação localizado, e que ele se importa comigo. Com a minha insetóide presença nas suas entranhas.


Lembro disto porque numa festa de São Pedro em Campina, anos atrás, estávamos em turma tomando alguma coisa ao redor de uma fogueira. Um amigo meu (chamemo-lo Rogério) estava mergulhado na sua tese de doutorado, as dificuldades de pesquisa, as necessidades de consultas bibliográficas. A certa altura, falou que conhecera por acaso, numa parada para abastecer o carro, alguém que tinha um documento científico obscuro do qual ele precisava; e saiu-se, bem satisfeito, com essa bendita frase sobre o Universo.
 
Eu tinha tomado algumas doses de Matuta e resolvi cortar o trunfo dele. Acendi um cigarro e perguntei:
 
– Tu acredita mesmo que o Universo, um departamento tão ocupado, larga as suas tarefas mais urgentes só pra ajudar na tua pesquisa?
 
– Não é assim que funciona – replicou Rogério, que não é bobo. – O que estou dizendo é que nas ações humanas existe um sistema invisível de correspondências, uma espécie de convergência estatística. A nossa percepção individual aprende isso de forma empírica e não-verbalizada ao longo da vida.
 
– Converse mais que eu pago seu lanche – disse alguém.
 
– Vocês são uns fariseus do conhecimento – rebateu ele. – Só acreditam no que diz no Manual. Pois eu digo a vocês que o Universo percebe, sim, o que nós precisamos, e age de acordo.
 
– Ele manda botar um livro numa prateleira dum sebo só porque viu que você dobrou aquela esquina e vai passar na frente?
 
– Não é assim tão simples. Há linhas de convergência. Enquanto minha mente consciente se preocupa com a necessidade da informação, há camadas mais profundas avaliando: Onde pode haver esse dado? Que tipo de livro? Que tipo de local acessível? Como estimular a Mente Consciente dele, essa senhora tão pedante e egocêntrica, a procurar a informação no lugar mais provável?
 
– E se a informação estiver num açougue, numa sapataria ou numa lanchonete?
 
– Não está, é claro. O Universo não é caótico. Há linhas de convergência.
 
– Eu já passei semanas numa biblioteca atrás de um dado qualquer e não achei – disse alguém. – O Universo estava de mal comigo?
 
– Eu poderia dizer que é porque você não estava suficientemente focado no seu objetivo – disse Rogério, – mas prefiro ser diplomático e dizer: Nem tudo na vida dá certo sempre. Por que teria de ser assim? São processos instáveis, sujeitos à influência de muitas variáveis. Às vezes você até pegou o livro certo, onde estava o tal dado; mas se interessou pelo título de outro capítulo e foi noutra direção... coisas assim.



– Mas por que motivo o Universo simpatizaria com um ser humano? – questionei. – Muito paternalista esse seu Universo. Muito bonachão... um universo querendo ajudar os jovens... Isso é coisa de quem já estudou em Seminário.
 
Toquei no calcanhar-de-Aquiles dele, que abespinhou-se.
 
– Existe uma energia subjacente, que permeia tudo – afirmou. – Nós somos sensíveis a ela, e ela a nós.
 
– Por que essa energia não salvou Saulinho? – disse alguém. Saulinho era um amigo nosso que tinha sido atropelado na véspera e estava no hospital, enclausurado em gesso.
 
– Excelente exemplo – tornou Rogério. – As sociedades humanas se organizam de um modo muito semelhante à dinâmica dos fluxos da energia natural. O trânsito precisa fluir, certo? Fluxos convergentes precisam parar de vez em quando para dar vez ao outro, e depois retomar seu curso. Saulinho é um abestado, vinha pensando na namorada e entrou no fluxo errado.
 
– E aí o Universo conspirou contra ele.
 
– Não “conspirou”, criatura. Isso é terminologia de filme de James Bond. As energias do universo circulam de acordo com lei do menor esforço, lei da economia energética... Quando estiver num avião, olhe a trajetória de um rio. O que é aquilo? Água solta, sendo atraída para o “centro virtual da Terra”, e procurando caminho ao longo de um terreno acidentado. A energia invisível é a mesma coisa. A gente larga uma balsa no rio e o rio vai levando, sem precisar de vela, de remos, de nada. Isso seria um exemplo do “conspirar a favor”, mas na verdade o que ocorre? A gente entende como aquela água está se comportando, e usa a nosso favor. Apenas isso.
 
– São as leis na Natureza – disse alguém que finalmente achou um meio de entrar na conversa.
 
– Chamar isso de leis é o mesmo que chamar de conspiração. Não são “leis”. São constantes, padrões de regularidade da matéria. A matéria se comporta de modo coerente. Temperatura, pressão, movimento, aceleração, ciclos biológicos, tudo isso se comporta de maneira constante, e a gente estuda isso há 10 mil anos.
 
– Mais – disse eu.
 
Ele fez um gesto de olímpico desdém, e prosseguiu:
 
– São detalhes. O homem usou o ímã, o magnetismo metálico, durante milênios, sem saber por que acontecia aquilo, mas entendendo como, e pronto. O conhecimento vai galgando degraus, de um em um.



Eu voltei à carga:
 
– Certo. Mas esse fato que você contou. O carro da UFCG parou para abastecer no Riachão. Vocês aproveitaram para tomar um café. Ficaram conversando, aproximou-se um cara que reconheceu você de uma palestra anos atrás. Puxou um assunto, depois outro, você descobriu que ele tinha a cópia de uma pesquisa de um professor dele, de “xis” anos atrás...
 
– Sim. Desculpe ter falado em conspiração-a-favor. Na verdade, foi uma convergência. Se eu faço uma palestra sobre um tema científico para 200 pessoas do ramo, estou lançando 200 anzóis com isca, sabendo da possibilidade de que mais cedo ou mais tarde algum dos 200 pegue num documento precioso e pense: “Ih rapaz, professor Rogério da UFCG mexe com isso... será que ele se interessa?...”  Convergências.
 
– E quem fez o carro parar para abastecer justamente ali, naquela hora?
 
– O Acaso. Um lance de dados jamais abolirá o Acaso.
 
– Então basta só esperar pelo Acaso.
 
– O Acaso funciona muito pouco com quem está esperando. Estar parado é fechar janelas de possibilidade. Estar em atividade constante é abrir, multiplicar janelas. Se eu não tivesse encontrado o cara lá no Riachão, talvez batesse com ele uma semana depois, um mês...
 
– Ou talvez depois de ter publicado a tese com um buraco no meio.
 
– E daí? Toda tese tem mais buracos do que a defesa da Seleção Brasileira. E a gente precisa ajudar o Acaso. Precisa ser como aquele atacante que estava de costas para o gol, numa confusão dentro da área, a bola bateu na trave, bateu nas costas dele e entrou. Se ele não estivesse ali, o gol não acontecia.
 
– Coitado de Saulinho! – disse alguém. E bebemos à saúde dele.
 
 





terça-feira, 27 de setembro de 2022

4867) "As Trevas" - de Lord Byron a Castro Alves (27.9.2022)


 

(Lord Byron e Castro Alves)

Já comentei aqui a possibilidade de uma Antologia da Poesia Fantástica Brasileira, não por ser ela rica e abundante, mas por ser como aquelas jazidas de algum material radioativo que se decompõe com facilidade, e é mister recolhê-lo, analisá-lo, antes que se transforme em chumbo inerte.
 
Quando eu era pequeno ainda não tinha aparecido ninguém para me explicar que poesia e prosa eram países vizinhos mas levemente hostis. E que para passar de um para o outro era preciso passaporte, visto, autorização, certificado de vacina e uma declaração detalhada do que pretendia o viajante fazer além-fronteiras. Eu não sabia. Adolescente, tinha na minha estante o Poesia e Prosa de Edgar Allan Poe, os Pequenos Poemas em Prosa de Charles Baudelaire, assim como as Poesias Completas de Machado de Assis – então estava tudo em casa.
 
É curioso que algumas das minhas primeiras experiências de “poesia fantástica” (Augusto dos Anjos à parte) tenham se dado através de poemas estrangeiros traduzidos por alguns dos nossos grandes poetas. Preciso lembrar, também, que estou usando o termo “fantástico” no sentido mais amplo possível, e não no sentido de estudiosos como Todorov, Louis Vax, John Clute, e outros. O acadêmico procura passar na literatura o pente mais fino possível, para deixar de fora tudo que não tenha o puro DNA de um gênero; esta é a função do acadêmico. O poeta recolhe todo o cascalho que lhe cai nas mãos e extrai o resíduo mais tênue do que procura; esta é a função do poeta.
 
É bom lembrar a influência avassaladora do chamado Romantismo do século 19, que tomou conta do Brasil com variadas colorações. Nossos poetas liam Victor Hugo, Chateaubriand, Alfred de Musset, Baudelaire... Rótulos à parte (não vou começar a catação-de-lêndeas do “Mas isso é Romantismo... ou Simbolismo?”), cada um lia o que lhe caía nas mãos, assimilava o que entendia, reproduzia o de que era capaz. E la nave va.
 
Castro Alves (1847-1871) era um romântico “condoreiro”. Não é exagero dizer que sua maior influência foi Victor Hugo (hélas!), principalmente no arroubo imagético e na impulsividade política. No tempo dele, todo mundo que escrevia era capaz de ler algo em francês, de modo que ainda hoje acho excepcional que ele tenha traduzido um poema tão longo – do inglês. Mas Byron é Byron. O Lorde (1788-1824) foi o Bob Dylan do seu tempo.
 
“Darkness” é um poema apocalíptico, um poema de fim do mundo e de extinção da Humanidade. Li a tradução do baiano com 10 ou 11 anos. Meu pai tinha o volume das Poesias Completas – um volume não tão grande assim, afinal Castro Alves morreu com 24 anos. É a imagem de um mundo onde inexplicavelmente o sol não brilha mais, os incêndios devastam cidades e florestas, e a espécie humana regride à bestialidade.
 
Sei que não estou exagerando quando vejo ecos dessa visão apocalíptica em obras subsequentes, como os contos “Demônios” (1893) de Aluísio Azevedo e “A Escuridão” (1963) de André Carneiro, que incluí na minha antologia Páginas de Sombra (2003).  E um pouco também no meu poema-ilustrado Na Torre da Lua Cheia, em parceria com o desenhista Cavani Rosas (Recife: CEPE, 2022).
 
A tradução de Castro Alves é dedicada ao dr. Franco Meirelles, médico baiano, professor de inglês e também tradutor de Byron. O poeta manteve o formato essencial do original inglês, decassílabos sucessivos em versos brancos (=sem rima). Não há partição em estrofes regulares, é um “bife” inteiro do começo ao fim. Nas transcrições modernas, alguns editores quebram esse formato, muito pesado.
 
O verso usado por Byron é a cadência muito frequente em inglês chamada “pentâmetro iâmbico”: di-DUM, di-DUM, di-DUM, di-DUM, di-DUM. O decassílabo do baiano é mais solto ritmicamente, variando de cadência conforme as necessidades de acomodação do vocabulário. Aos ouvidos nordestinos, não passarão despercebidos, de vez em quando, os sons do martelo agalopado, como esse verso arrepiante que anuncia a visão: “Tive um sonho que em tudo não foi sonho!...”
 
 
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AS TREVAS
(Traduzido de Lord Byron)
A meu amigo, o dr. Franco Meireles, inspirado
tradutor das Melodias Hebraicas

Tive um sonho que em tudo não foi sonho!...
O sol brilhante se apagara: e os astros,
do eterno espaço na penumbra escura,
sem raios, e sem trilhos, vagueavam.
A terra fria balouçava cega
e tétrica no espaço ermo de lua.
A manhã ia, vinha... e regressava...
Mas não trazia o dia! Os homens pasmos
esqueciam no horror dessas ruínas
suas paixões. E as almas conglobadas
gelavam-se num grito de egoísmo
que demandava "luz". Junto às fogueiras
abrigavam-se... e os tronos e os palácios,
os palácios dos reis, o albergue e a choça
ardiam por fanais. Tinham nas chamas
as cidades morrido. Em torno às brasas
dos seus lares os homens se grupavam,
pra à vez extrema se fitarem juntos.
Feliz de quem vivia junto às lavas
dos vulcões sob a tocha alcantilada!
Hórrida esp'rança acalentava o mundo!
As florestas ardiam!... de hora em hora
caindo se apagavam; crepitando,
lascado o trono desabava em cinzas.
e tudo... tudo as trevas envolviam.
As frontes ao clarão da luz doente
tinham do inferno o aspecto... Quando às vezes
as faíscas das chamas borrifavam-nas.
Uns, de bruços no chão, tapando os olhos
choravam. Sobre as mãos cruzadas — outros —
firmando a barba, desvairados riam.
Outros correndo à toa procuravam
o ardente pasto pra funéreas piras.
Inquietos, no esgar do desvario,
os olhos levantavam pra o céu torvo,
vasto sudário do universo — espectro —,
e após em terra se atirando em raivas,
rangendo os dentes, blasfemos, uivavam!
Lúgubre grito os pássaros selvagens
soltavam, revoando espavoridos
num vôo tonto co’as inúteis asas!
As feras ’stavam mansas e medrosas!
As víboras rojando s’enroscavam
pelos membros dos homens, sibilantes,
mas sem veneno... a fome lhes matavam!
E a guerra, que um momento s’extinguira,
de novo se fartava. Só com sangue
comprava-se o alimento, e após à parte
cada um se sentava taciturno,
pra fartar-se nas trevas infinitas!
Já não havia amor!... O mundo inteiro
era um só pensamento, e o pensamento
era a morte sem glória e sem detença!
O estertor da fome apascentava-se
nas entranhas... Ossada ou carne pútrida
ressupino, insepulto era o cadáver.
Mordiam-se entre si os moribundos:
mesmo os cães se atiravam sobre os donos,
todo exceto um só... que defendia
o cadáver do seu, contra os ataques
dos pássaros, das feras e dos homens,
até que a fome os extinguisse, ou fossem
os dentes frouxos saciar algures!
Ele mesmo alimento não buscava...
Mas, gemendo num uivo longo e triste
morreu lambendo a mão, que inanimada
já não podia lhe pagar o afeto.
Faminta a multidão morrera aos poucos.
Escaparam dous homens tão-somente
de uma grande cidade. E se odiavam.
... Foi junto dos tições quase apagados
de um altar, sobre o qual se amontoaram
sacros objetos pra um profano uso,
que encontraram-se os dous... e, as cinzas mornas
reunindo nas mãos frias dos espectros,
de seus sopros exaustos ao bafejo
uma chama irrisória produziram!...
Ao clarão que tremia sobre as cinzas
olharam-se e morreram dando um grito.
mesmo da própria hediondez morreram,
desconhecendo aquele em cuja fronte
traçara a fome o nome de Duende!
O mundo fez-se um vácuo. A terra esplêndida,
populosa tornou-se numa massa
sem estações, sem árvores, sem erva,
sem verdura, sem homens e sem vida,
caos de morte, inanimada argila!
Calaram-se o oceano, o rio, os lagos!
Nada turbava a solidão profunda!
Os navios no mar apodreciam
sem marujos! Os mastros desabando
dormiam sobre o abismo, sem que ao menos
uma vaga na queda alevantassem.
Tinham morrido as vagas! e jaziam
as marés no seu túmulo... antes delas
a lua que as guiava era já morta!
No estagnado céu murchara o vento;
esvaíram-se as nuvens. E nas trevas
era só trevas o universo inteiro.
 
 
 
**************** 
 
Darkness
(George Gordon, Lord Byron)
 
I had a dream, which was not all a dream.
The bright sun was extinguish'd, and the stars
Did wander darkling in the eternal space,
Rayless, and pathless, and the icy earth
Swung blind and blackening in the moonless air;
Morn came and went—and came, and brought no day,
And men forgot their passions in the dread
Of this their desolation; and all hearts
Were chill'd into a selfish prayer for light:
And they did live by watchfires—and the thrones,
The palaces of crowned kings—the huts,
The habitations of all things which dwell,
Were burnt for beacons; cities were consum'd,
And men were gather'd round their blazing homes
To look once more into each other's face;
Happy were those who dwelt within the eye
Of the volcanos, and their mountain-torch:
A fearful hope was all the world contain'd;
Forests were set on fire—but hour by hour
They fell and faded—and the crackling trunks
Extinguish'd with a crash—and all was black.
The brows of men by the despairing light
Wore an unearthly aspect, as by fits
The flashes fell upon them; some lay down
And hid their eyes and wept; and some did rest
Their chins upon their clenched hands, and smil'd;
And others hurried to and fro, and fed
Their funeral piles with fuel, and look'd up
With mad disquietude on the dull sky,
The pall of a past world; and then again
With curses cast them down upon the dust,
And gnash'd their teeth and howl'd: the wild birds shriek'd
And, terrified, did flutter on the ground,
And flap their useless wings; the wildest brutes
Came tame and tremulous; and vipers crawl'd
And twin'd themselves among the multitude,
Hissing, but stingless—they were slain for food.
And War, which for a moment was no more,
Did glut himself again: a meal was bought
With blood, and each sate sullenly apart
Gorging himself in gloom: no love was left;
All earth was but one thought—and that was death
Immediate and inglorious; and the pang
Of famine fed upon all entrails—men
Died, and their bones were tombless as their flesh;
The meagre by the meagre were devour'd,
Even dogs assail'd their masters, all save one,
And he was faithful to a corse, and kept
The birds and beasts and famish'd men at bay,
Till hunger clung them, or the dropping dead
Lur'd their lank jaws; himself sought out no food,
But with a piteous and perpetual moan,
And a quick desolate cry, licking the hand
Which answer'd not with a caress—he died.
The crowd was famish'd by degrees; but two
Of an enormous city did survive,
And they were enemies: they met beside
The dying embers of an altar-place
Where had been heap'd a mass of holy things
For an unholy usage; they rak'd up,
And shivering scrap'd with their cold skeleton hands
The feeble ashes, and their feeble breath
Blew for a little life, and made a flame
Which was a mockery; then they lifted up
Their eyes as it grew lighter, and beheld
Each other's aspects—saw, and shriek'd, and died—
Even of their mutual hideousness they died,
Unknowing who he was upon whose brow
Famine had written Fiend. The world was void,
The populous and the powerful was a lump,
Seasonless, herbless, treeless, manless, lifeless—
A lump of death—a chaos of hard clay.
The rivers, lakes and ocean all stood still,
And nothing stirr'd within their silent depths;
Ships sailorless lay rotting on the sea,
And their masts fell down piecemeal: as they dropp'd
They slept on the abyss without a surge—
The waves were dead; the tides were in their grave,
The moon, their mistress, had expir'd before;
The winds were wither'd in the stagnant air,
And the clouds perish'd; Darkness had no need
Of aid from them—She was the Universe.
 
 
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sábado, 24 de setembro de 2022

4866) É verdade esse bilete (24.9.2022)


O professor Douglas R. Hofstadter, um dos meus cientistas favoritos, propôs em seus livros (principalmente em Gödel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid, 1979) o conceito de “strange loop”, que pode ser traduzido aproximadamente por “laço estranho”. Um loop é algum processo cujo fim se engata no começo, como uma serpente mordendo a ponta da própria cauda. Usa-se muito em música eletrônica – um loop musical é em geral um trecho de alguns segundos que se repete, ciclicamente. Toda vez que chega ao fim, começa outra vez.
 
O “laço estranho” proposto por Hofstadter é mais complexo. Na definição dele, ocorre quando movemos através de níveis superpostos, em que cada um é hierarquicamente superior ao que lhe está por baixo, e quando subimos ou descemos um nível percebemos inesperadamente que estamos de volta no ponto de onde partimos.
 
Aliás, essa sensação desconcertante de estar de volta, sem querer, ao ponto de partida, é muito explorada em filmes de terror por exemplo – pessoas que querem fugir de uma cidade mas todas as ruas levam de volta ao lugar ameaçador do qual querem se distanciar, por exemplo.
 
É uma situação uncanny, e digo isto porque Freud, em seu ensaio O Estranho (“The Uncanny”, 1919) relata uma vez, numa cidade da Itália, em que ele estava andando à toa, e percebeu que tinha entrado na zona do baixo meretrício local. Toda vez que ele pegava uma rua para se afastar dali, a rua fazia uma curva e o trazia de volta. Freud explica?...
 
O problema sugerido por Hofstadter, como falei, é mais complexo. Freud estava vagando num mesmo nível hierárquico, ou seja, num mesmo plano de realidade (a cidade italiana). Mas imaginemos dois planos diferentes. A gravura de M. C. Escher “Print Gallery” mostra um bom exemplo. Um homem, numa galeria de arte, contempla a gravura de uma cidade; em cada área do quadro os objetos são vistos num grau maior de aumento, de forma que o edifício mostrado na gravura exibe uma galeria onde um homem (ele próprio) contempla uma galeria análoga.


A gravura mostrada no quadro contém a cidade, o prédio e a própria galeria onde a gravura está exposta. Isto é um “laço estranho”. Nós retornamos, sem haver nenhuma quebra de continuidade aparente, ao ponto onde estávamos. Hofstadter chama isso de “tangled hierarchies”, hierarquias entrelaçadas – quando em tese deveriam ser isoladas uma da outra, gravura é gravura, realidade é realidade.
 
Um exemplo dos mais divertidos é o filme de Woody Allen A Rosa Púrpura do Cairo, em que se misturam duas hierarquias: o filme que passa na tela, os espectadores na platéia. Atores descem da tela para a sala, batem boca com os que continuam lá em cima, num sincronismo perfeito e sem a menor dificuldade de compreensão para o espectador.


Vou usar de modo um tanto livre esse conceito aplicado a textos. Os exemplos na ficção são inúmeros – livros onde de certa forma a “realidade interna” do livro é quebrada e o mundo do leitor se insinua lá para dentro (ou vice-versa – os personagens “vazam” aqui para fora.)  Mas vou usar alguns memes que aparecem recorrentemente nas redes sociais, alguns devem ser inventados, outros autênticos, não importa: importa que sugerem variantes ao conceito de “hierarquias entrelaçadas”.

 
O primeiro deles é o mais famoso, que usei no título. O garoto, ao que parece, escreveu de forma canhestra e infantil um bilhete para os pais. (Vamos supor, por hipótese de trabalho, que tudo ocorreu assim.)


SENHORES PAES. AMANHÃ NÃO VAI TER AULA POORQUE [sic] PODE SER FERIADO

ASSINADO: TIA. PAULINHA

É VERDADE ESSE BILETE

 

Existe aí uma tentativa ingênua de falsificar um comunicado oficial do colégio. Que já desmorona no aspecto material: o papelucho rasgado, a caligrafia denunciadora, etc. O garoto terá feito isto a sério? Ele chegou a acreditar que os pais acreditariam? Parece que quando chegou A Hora Da Verdade – a temível hora de botar no papel as nossas Grandes Idéias – a rebordosa da realidade bateu com força e ele foi percebendo a enrascada em que se metera.


O problema aumentou quando ele assinou o nome da professora do único jeito que sabia: “Tia Paulinha”. E em desespero de causa ele adicionou a frase que hoje é famosa: “É verdade esse bilete”.
 
Existe aí um “laço estranho” misturando várias hierarquias: o bilhete pretensamente real; os “furos”, evidentes até para o falsificador; a frase em-desespero-de-causa; e por último um fator extra-texto mas não menos importante – o bilhete (ao que parece), foi entregue, mesmo em plena auto-decomposição semiótica.
 
O segundo exemplo é outro que sempre me provoca uma risada de primeira-vez quando o reencontro nas redes sociais.
 
Também escrito num pedaço rasgado de um caderno escolar, o recado diz apenas:
 


Mamãe, a chave está debaixo do tapete.

Ladrão, vai à merda.

Claudete

 

Quem nunca deixou a chave de casa embaixo do tapete “Bem Vindo” à porta? Ou no vaso de planta do terraço? Ou no quadro-de-luz? Ou em cima da soleira da porta? As possibilidades, como sempre, são infinitas. (Eu preciso usar esta frase como meu epitáfio.)
 
Claudete começou a escrever o bilhete pensando em deixá-lo na porta, provavelmente, mas no próprio ato de rabiscar percebeu que não tinha muita diferença entre deixar a chave à mostra e deixar um bilhete revelando onde ela estava escondida.
 
A primeira frase do bilhete é uma informação que se auto-invalida no momento em que é recebida pela pessoa errada. Claudete se aperreou. Como revelar o local da chave à mãe, mas não ao possível ladrão? Ela deixou lá, e desabafou: “Ladrão, vai à merda”.
 
É um “laço estranho”, porque o bilhete se dirigia a duas pessoas, na certeza de que qualquer uma das duas que lesse impediria a outra de fazer o mesmo. E o fato de que o bilhete foi deixado no local (presumo isto, como hipótese de trabalho) é um “gesto informativo” a mais. Ela confiou que a possibilidade do bilhete ir parar nas mãos do ladrão era confortavelmente menor do que de ir para nas mãos da mãe. Deixou o bilhete, e mandou o ladrão à merda. (No que fez muito bem.)
 
O terceiro exemplo é também muito gozado, mas aqui não se trata de um recado, e sim de um diálogo via WhatsApp.
 


Ciço, acho que tô buchuda.

 

Watsapp informa: nosso cliente

não utiliza mais esse serviço móvel

para troca de mensagens instantâneas.

 

Deixa de ser ridículo! Eu sei

que é você! Você escreveu

Whatsapp errado seu imbecil!

Seja um Homem!

 

Informamos também que estamos

apresentando erros hortográficos

em nossa plataforma de mensagens.

 
Este é um diálogo literariamente sofisticado, no sentido de que as palavras dizem uma coisa mas ao mesmo tempo deixam transparecer de maneira cristalina o que está de verdade acontecendo entre as duas pessoas. A moça que inicia a conversa, Francisca, é uma pessoa pé-no-chão e nem um pouco boba, porque logo na primeira resposta ela percebe um erro e entende a manobra de “Ciço”.
 
Ela reclama, bota o cara no canto da parede. E aí percebemos a cara de pau de Ciço, que não se dá por achado, não dá o braço a torcer, e recorre ao “laço estranho” de fingir que é um sistema de respostas automáticas capaz de entender a acusação que lhe é feita por escrito. E quando ele recorre à mais improvável das comprovações (“hortográficos”), percebemos que na verdade Ciço não está querendo convencer a moça de que é o WhatsApp. Está apenas tirando o corpo fora da situação, com uma manobra metalinguística, mas deixando sua intenção muito clara.
 
Estes três exemplos mostram mensagens que se detonam a si mesmas, denunciando as próprias contradições ao entrelaçar diferentes hierarquias: diferentes vozes, diferentes origens do discurso ou diferentes destinatários.
 
Para encerrar, vai aqui um exemplo ilustre, que não sei se é verdadeiro porque o texto é atribuído ao escritor Marcel Proust, mas vem em inglês, e não em francês, como seria de se esperar. Mas enfim – tudo é literatura.

Minha Cara Senhora

Acabo de perceber que esqueci minha bengala

em sua casa, ontem. Por favor, tenha a gentileza

de entregá-la ao portador deste bilhete.

P.S. – Peço perdão por incomodá-la; acabo de

encontrar minha bengala.

Marcel Proust

 








quarta-feira, 21 de setembro de 2022

4865) Jean-Luc Godard, o incompreendido (21.9.2022)



Parece que coube a Cacá Diegues esta frase emblemáticas e definitiva: “Para nós, a palavra Cinema é abreviatura de Cinema Americano”. E não lembro agora quem afirmou (com igual precisão) que “os americanos descobriram o segredo do ritmo cinematográfico”.
 
Eu corrigiria apenas observando que eles não “descobriram o”, mas “inventaram um”. E as forças conjugadas do dólar, da política, do comércio e (não convém desprezar) do poder simbólico das mitologias norte-americanas impuseram esse ritmo como sendo o que todo brasileiro espera quando compra seu ingresso na bilheteria. Cinema virou sinônimo daquele cinema.
 
Jean-Luc Godard e outros diretores da nouvelle vague eram igualmente fascinados pelo cinema norte-americano. Só que a França, comparada ao Brasil, é outro patamar. Eles podem encarar os gringos de frente, no mesmo nível, olho no olho. Ou pensam que podem, o que em termos de Arte vem a dar na mesma coisa. Os nouvellevaguistas eram antropofágicos, ao seu modo. Digeriram da cultura dos EUA um monte de coisas que os próprios norte-americanos já tinham esquecido ou que menosprezavam: Samuel Fuller, Jerry Lewis, David Goodis, Nicholas Ray, Buster Keaton, o filme “noir”, a pulp fiction.


(Made in USA, 1966)

 
Dessa turma francesa, Godard era talvez o menos preocupado em “fazer sucesso”. Seu cinema é, na maior parte do tempo, um anti-cinema, no sentido de que é um anti-cinema-americano, não porque ele deteste o cinema dos EUA, mas porque quer espicaçá-lo, provocá-lo, canibalizá-lo, desconstruí-lo. No que faz muito bem.
 
A tríade em que repousa o cinema convencional é: Identificação, Empatia e Catarse. O público se identifica com alguns aspectos dos personagens – que tanto podem ser Carlitos quanto Hannibal Lecter – e se transporta mentalmente para a tela. Cria uma empatia e se projeta em seus dramas, suas ações, seus perigos, seus afetos. E através disso obtém a catarse, vivendo vicariamente (indiretamente, parasitariamente) o que o personagem vive: experimenta o amor, o ódio, o perigo, a excitação, a brutalidade, o riso.
 
Godard não quer nada disso, ele quer o distanciamento crítico, e neste aspecto é o mais brechtiano dos diretores do cinema. Godard parece dizer o tempo todo: “Pára, é um filme, não está acontecendo, é só uma encenação para que você se pergunte: Quem? O quê? Por quê?”.
 
Em La Chinoise, há uma cena (00:47:31) em que o personagem mostra um quadro negro cheio de nomes escritos, sob o letreiro “A História da Arte nos Últimos 100 Anos”. Ele vai eliminando de um em um. No final, “Brecht” é o único que sobra.



 
O filme convencional é um discurso de mão única (da tela para a sala) que visa emocionar o público. O filme de Godard é uma triangulação entre a tela, a sala, e uma presença invisível (o Diretor) que se interpõe o tempo inteiro entre as duas, interrompendo a catarse. Por isso Godard é tão odiado. Interromper a catarse de um espectador de cinema é ainda mais grave do que interromper um espirro ou um orgasmo.
 
Veja-se o caso de Bande à Part, um filme despretensioso e simpático, o único de Godard incluído na lista dos “100 Melhores Filmes” da revista Time. Acompanhamos dois rapazes e uma moça que planejam um assalto (“planejam” é exagero: eles ficam com vontade de fazer um assalto e acabam fazendo mesmo) e o tempo inteiro uma voz vem por trás da câmera, por trás do nosso ombro, segredando alguma coisa ao nosso ouvido. É o diabo do diretor.

Por volta dos 8 minutos de filme, essa voz anuncia, baixinho: “Para o espectador que chegou atrasado, vamos fornecer umas poucas palavras escolhidas aleatoriamente: Três semanas antes. Um monte de dinheiro. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica.”
 
Como a história é simples e os personagens têm um certo carisma (carisma e catarse têm o mesmo DNA), a gente aceita. E por que não? Um dos rapazes escreve mais adiante, num quadro negro: “Eliot: Tudo que é novo é automaticamente tradicional”.


Bande à Part é o filme com a famosa cena da “dancinha”, multiplicada em memes e em citações pelo mundo afora. Os dois rapazes e a moça (com chapéu de homem) dançam uma coreografiazinha meio ensaiada, meio lembrada na hora.
 
É uma cena hipnótica. O leve desencontro nos movimentos deles exige de nós uma atenção quase inconsciente, mas constante. Nosso cérebro fica “corrigindo” mentalmente a coreografia, e assim não mergulha no piloto-automático do mero deleite, do mero consumo. Uma dança com excesso de perfeição (os filmes de Busby Berkeley, os dançarinos de Bali) elimina esses solavancos – e produz um adormecimento, uma atenção apenas passiva.
 
E como se não bastasse, o diabo do diretor volta a cochichar. Ele interrompe três vezes o áudio (os jovens continuam dançando, sem som) para dizer que este é o momento de uma digressão sobre os sentimentos dos personagens. A música está tocando e de repente um corte do áudio. Voz: “Arthur segue olhando os pés; mas sua mente está na boca de Odile e seus beijos românticos.”  Volta música. Corte de novo. Voz: “Odile se pergunta se os garotos percebem seus seios movendo-se por baixo do suéter.”  Volta a música, terceiro corte, voz: “Franz pensa em tudo e em nada. Ele se pergunta se o mundo está virando um sonho ou se o sonho está virando o mundo.”
 
Passa? Parece que passa, porque o corte não é tão intruso assim, e de certa forma contribui para a nossa identificação e a empatia. Depois, Godard usaria o mesmo artifício para fazer comentários marxistas-leninistas.
 
De certo modo essa cena equivale às entrevistas que ele faz com os atores de A Chinesa (1967), jovens maoístas trancados no enorme umbigo do apartamento dos pais de um deles (uma situação retomada anos depois, em outros termos, pelo filme Os Sonhadores, 2003, de Bernardo Bertolucci). A câmera enquadra em close o ator-personagem, que responde perguntas vindas lá de trás, quase inaudíveis (o que me lembrou o saudoso programa musical Ensaio, de Fernando Faro na TV-Cultura, um programa godardiano em mais de um aspecto).



Essas cenas reproduzem de certa forma as entrevistas de um diretor que escolhe atores. Godard está, por cima de nosso ombro, “entrevistando os personagens”, para checar se o ator/atriz já o incorporou devidamente. (Ele chega a mostrar Raoul Coutard e sua câmera.) Mas eu já vi diretor de teatro fazer isso e, diabolicamente, misturar perguntas pessoais, especificamente dirigidas ao ator/atriz. Como interrogatório de espião nas mãos da CIA, do Mossad, da KGB. Quem é você? Gosta do quê? Vive como? Veio de onde? O que anda fazendo?
 
E nessa triangulação (tela/sala/diretor) o filme, que teoricamente é de ficção, ganha uma leveza e uma soltura de documentário, de coisa não decorada, não encenada, de coisa espontânea, ou ficticiamente espontânea. E mesmo quando o texto da resposta é do personagem, sentimos por baixo dele uma dosezinha da atriz; e vice-versa.
 
Falo aqui de vez em quando que a música no cinema e na TV é um “indutor emocional”, um efeito subliminar nos explicando (e nos impondo) o que devemos sentir. São os violinos açucarados que mesmo um cara talentoso como Steven Spielberg empurra em toda cena de amor. São os rumores tectônicos, ultra-graves, que mexem com nossos intestinos nos filmes de horror em cinema com som Dolby. São as novelas da Globo, onde nas cenas cômicas é preciso botar no áudio um cavaquinho moleque, como quem diz: “Riam! Essa cena foi engraçada!”.



(Made in Usa, 1966)

Godard é um subversivo do som, mais do que da política. Ruídos súbitos explodem, estridentes, sem propósito, a qualquer instante, fazendo a gente pôr as mãos nos ouvidos. Música dissonante, trechos de peças de vanguarda concretista, falas em desacordo com os movimentos labiais do elenco, barulhos irritantes e contínuos, silêncios inexplicáveis...
 
Godard sabe que o som é mais visceral e mais animal do que a imagem, e assalta o tempo inteiro esse flanco desprotegido.
 
E quando precisa, ele sabe usar o som de outra forma. Em A Chinesa¸ Jean-Pierre Léaud e Anne Wiazemsky discutem a relação quanto estudam sentados à mesa, com uma vitrola ao lado. O rapaz se queixa de que na luta revolucionária é impossível batalhar em duas frentes. Ela põe um disco, e faz uma pseudo-confissão de que não o ama mais, para mostrar-lhe que ele é capaz, sim, de assimilar música e linguagem simultaneamente.
 
O que ouvimos comenta o que vemos. Em Bande à Part, Anna Karina e Claude Brasseur viajam de metrô e comentam ficticiamente os sentimentos das pessoas que veem: “Olha para aquele... por que aquela expressão? É qualquer coisa que imagines. Sua aparência mudará dependendo da sua estória. Digamos que ele está levando um ursinho de pelúcia para sua filha doente.  E ele parecerá bem. Mas ele parecerá cruel se você imaginar que ele está levando dinamite para explodir o país.”
 
Godard ganhou muitas antipatias por fazer um cinema destinado à inteligência, e não à emoção. É uma forma de fazer cinema – entre muitas. Eu não quereria viver num mundo onde todo mundo filmasse igual a Godard. Ou a Buñuel. Ou a Walt Disney. E quando quero me emocionar, vou assistir Truffaut ou Fellini ou Billy Wilder, que me emocionam sempre.


 
Vistos em retrospecto, já devidamente domesticados, alguns filmes seus me emocionam hoje, principalmente os seus retratos da mulher dos anos 1960 na França: os casamentos complicados (Uma Mulher Casada), a ilusão pop (Duas ou Três Coisas que eu sei Dela, Masculino Feminino), a prostituição (Duas ou Três Coisas que eu sei Dela, Viver a Vida), a violência doméstica e social (Week End)... Os anos 1960 não foram nenhum paraíso.
 
Entre 1959 e 1967, Godard dirigiu quinze longas-metragens, todos eles muito bons, pelo meu gosto. Filmes em geral feitos com pouco dinheiro, feitos meio às pressas, misturando roteiro e improvisação, captando fatos do momento (os inevitáveis rádios ligados, TVs ligadas, jornais lidos em voz alta), captando o espírito do tempo – e pulando nos anos seguintes para um tipo de cinema completamente diferente.
 
Por trás dos óculos-escuros indevassáveis e do cigarro desdenhoso, era um rapaz pilhado, insone, desgastado por pensar o tempo inteiro, capaz de transformar uma atriz em musa de uma geração, casar com ela e tratá-la como se fosse uma criada. Tinha as qualidades e os defeitos dos intelectuais do seu tempo. Ele e sua obra são uma Pedra de Roseta para entender o mundo em que ele viveu (em que eu vivi), um mundo incompreensível para os olhos de hoje.










domingo, 18 de setembro de 2022

4864) "No País da Poesia Popular" (18.9.2022)



Começam hoje, domingo dia 18, as exibições do segundo episódio da série No País da Poesia Popular, no canal “Cine Brasil TV”. O Episódio 2, “História do Romanceiro Nordestino”,  será exibido nestes horários:
 
Domingo, 18 de setembro – 22:30
Terça, 20 de setembro – 22:00
Quinta, 22 de setembro – 23:30
Sexta, 23 de setembro – 11:30
Segunda, 26 de setembro – 19:30
Quarta, 28 de setembro – 13:00
 
A série, dirigida por José Araripe, e na qual sou roteirista e apresentador, é uma produção da “Truque”, de Salvador, e foi gravada em 2019. A pandemia e o resultante pandemônio encalharam por algum tempo a finalização, mas agora os 13 episódios de meia hora serão exibidos aos poucos no Cine Brasil TV.

COMO ACESSAR:
Aqui no saite do canal Cine Brasil TV é possível checar quais as operadoras:
 
https://www.cinebrasil.tv/index.php/localize-o-canal
 
O primeiro impulso de inspiração para esta série surgiu no longínquo ano de 1977, quando eu e Araripe nos conhecemos, fazendo parte do grupo Teatro Livre da Bahia, dirigido por João Augusto, no Teatro Vila Velha, de Salvador. Fizemos como atores inúmeras peças de teatro-de-rua inspiradas em folhetos de cordel como “A Briga do Fiscal com a Fateira” ou “A Chegada de Lampião no Inferno”.
 
Depois, parte desse material foi transposta por João Augusto para o espetáculo Oxente Gente, Cordel que fez várias temporadas em Salvador, e viajou no saudoso “Projeto Mambembão” para Rio, São Paulo e Brasília. Lembro também com saudade que fazia parte desse grupo o meu parceiro Zelito Miranda, outro maluco por cantoria de viola. Falecido no mês passado na Bahia, Zelito formava comigo na peça uma dupla de cantadores hilária, caricatural.


(BT e Zelito Miranda, em Oxente Gente, Cordel, Salvador, 1978)

 
Ou seja, já naquela época líamos e discutíamos ardorosamente a poesia popular. E herdamos um pouco do espírito meio anárquico e desafiador de João Augusto. Ele nos dizia o tempo todo que o cordel não estava morto, nem sequer doente; que a poesia popular não era uma coisa pura, trancada numa redoma de vidro, era uma força viva que morre e ressuscita um milhão de vezes por dia.
 
O programa No País da Poesia Popular começou a ser gravado em setembro de 2019, quando passei uma semana em Salvador. Araripe e sua equipe viajaram depois pelo Rio, São Paulo, Ceará, Paraíba e Pernambuco, num total de 17 cidades com 50 entrevistados.
 
É muito pouco, na verdade, diante das dezenas de milhares de poetas profissionais que atuam principalmente no Nordeste: folheteiros, editores, violeiros, emboladores de coco, aboiadores... Toda vez que a gente faz um trabalho tipo documentário sobre um assunto tão rico eu me lembro do comediante Zero Mostel, que queria vender uma casa e andava com um tijolo na bolsa, para servir de amostra.


(Bule-Bule, Bahia)
 

O meio acadêmico discute exaustivamente o que pode e o que não pode ser chamado de “poesia popular”. Uma discussão muito necessária. A Arte Da Palavra se manifesta de maneiras diferentes no hai-kai japonês, no soneto italiano, na rapsódia grega, no concretismo paulista, no surrealismo francês, nas trovas provençais, no rap urbano contemporâneo, no poema modernista... (E reparem, nem estou tocando na prosa, porque se entrar por aí a gente amanhece o dia.)
 
E se manifesta nas formas que a gente cultiva no Nordeste: o folheto de cordel, a cantoria de viola, o poema matuto, a mesa de glosa, o romance cantado, o aboio, o coco de embolada, e por aí vai.


[Mocinha de Passira)

 
Um pouco disto vai registrado nestes programas, cuja exibição começa com os 3 primeiros em setembro, e irá se estendendo pelos meses seguintes:
 
Episódio 01 - O Folheto e o Repente
Episódio 02 - História do Romanceiro Nordestino
Episódio 03 - O Jornal do Sertão
Episódio 04 - Quando os Bichos Eram Gente
Episódio 05 - Histórias de Amor e Sofrimento
Episódio 06 - A Fantasia Heróica
Episódio 07 - As Novelas e os Romances Clássicos
Episódio 08 - Incrível, Fantástico, Extraordinário
Episódio 09 - Os Bons, os Maus e os Feios
Episódio 10 - A Mulher no Cordel
Episódio 11 - Utilidade Pública
Episódio 12 - Humor e Sátira
Episódio 13 - Cordel e Ficção Científica



(programação do primeiro mês)
 

Todo mundo vai dizer: “Eita, faltou isso, faltou aquilo, faltou Fulano, faltou Sicrano”. E geralmente vai ter razão. Me lembro de uma vez que eu estava em Areia (PB) almoçando num bar e vendo no Globo Esporte uma matéria interessante sobre grandes batedores de pênalti do futebol brasileiro: Pinheiro, Pelé, Zico, Roberto Dinamite... Quando a matéria terminou, um bêbo no balcão cuspiu de lado e disse: “Se não falou em Luís Garapeiro, não disse nada.” E quem sou eu pra discutir? Eu vi ao vivo Luís Garapeiro batendo pênalti.



(Lirinha, São Paulo)

 
Toda esta lenga-lenga é para dizer que a poesia popular não é um panteão com uma dúzia de ídolos obrigatórios e mais nada. O programa procurou inclusive mostrar pessoas que dificilmente seriam mostradas num programa “A História da Literatura de Cordel”. Aqui estão amigos meus que são músicos, cantores, compositores, que devem muito à poesia popular, cada qual ao seu modo: Lenine, Numa Ciro, Antonio Nóbrega, Beto Brito, Lirinha, os irmãos Marinho... No Nordeste, pelo menos, poesia popular e música popular são vizinhos de porta.



(Felipe Canário, Campina Grande)


A possibilidade de uma segunda temporada é algo sempre em aberto, para séries de TV. Tudo que a gente não consegue enfiar na mala, deixa para procurar no ano que vem. Falei lá em cima a história do tijolo, representando uma casa. É mais ou menos isso. É um oceano. Você vai lá, e traz uma garrafa cheia, como amostra.


 
(Arievaldo Viana, Fortaleza, in memoriam)