Ri bastante agora de tarde com uma postagem de Carlos
Alberto Mattos, no Facebook. Para quem não conhece, Carlinhos é um dos grandes
críticos de cinema neste país. Por paixão, profissão e determinismo histórico
ele é obrigado a ver centenas, quiçá milhares, de filmes por ano.
Não é fácil
ser crítico. Bom é ser cinéfilo: o sujeito que só vê o que gosta, ou o que lhe
desperta a curiosidade. O crítico de cinema é como um psiquiatra: é obrigado a examinar o que se passa nas cabeças alheias, e isso nem sempre é agradável de
ver.
A obrigação de ver tanta coisa nos leva aos pântanos dos
filmes dublados ou legendados. O trabalho de produzir
legendas/dublagem de filmes é um dos territórios mais atoladiços desta
profissão, e as chances de sobrevivência são menores do que as de quem cruza a pé o Raso da
Catarina.
Eis a queixa de Carlos:
Equívocos
costumeiros de tradução que me irritam profundamente na legendagem de filmes:
-
"Last night" por "Noite passada" em vez de "Ontem à
noite"
-
"Just do it" por "Apenas faça" em vez de "Faça, e
pronto"
-
"At the end of the day" por "No fim do dia" em vez de
"No fim das contas"
-
“By the book" por "Pelo livro" em vez de "Segundo as
regras" ou "Como manda o figurino".
Ri bastante, ri com gosto. Foi a primeira gargalhada do
dia, e talvez a última do ano. E o fiz por uma razão muito simples: a de que já
cometi todos os erros acima, ao
traduzir. Provavelmente ainda os cometerei de novo, porque se a experiência
dos erros passados ensinasse alguma coisa a um ser humano nós já estaríamos
vivendo em alguma pós-Utopia.
É preciso fazer uma ressalva importante, para as pessoas
que não traduzem. Tradução de filmes (para legendagem ou dublagem) é um terror,
um sufoco, um serviço onde geralmente o profissional recebe uma maçaroca de
frases em inglês, impressas em papel, e tem que vertê-las para o português sem
ver o filme ou sequer escutar os diálogos que está traduzindo. E naquela base
do: “Olha, são só 30 páginas, queremos isso amanhã de tarde, sem falta.”
Qual o problema com os exemplos de Carlos? Para mim, tudo
reside no fato de que todas essas formas que ele critica (com razão), parecem corretas, soam corretas, simplesmente porque estão coladas, obedientemente,
ao sentido das palavras.
Entra aqui o meu Primeiro Postulado de Tradução, que
reza: “A gente não traduz palavras,
traduz frases”.
(Algum espertinho vai querer aperfeiçoar isto estendendo
o conceito para “parágrafo”, etc. Fique
à vontade, ou, como se diz na tevê, seja meu convidado.)
Existem frases-prontas em inglês nas quais a gente deve
ignorar as palavras, porque temos equivalentes úteis em português. É o caso de
“By the book” que pode ser traduzido por “Como manda o figurino”, e vice-versa.
Eu já traduzi “Just do it” por “apenas faça” (não sei
onde, nem quando; apenas fiz). Parece fazer sentido, não é mesmo? A gente chega
a esquecer que “just” é uma das palavras mais dispensáveis do inglês, um mero
reforço, um expletivo, ou (como dizia John Lennon) uma palavra que a gente
enfia no verso quando tem uma sílaba faltando. Mesmo quando necessária, é uma
palavrinha arroz-de-festa. O “Faça, e pronto” sugerido por Carlos troca essa
palavra-chuchu por um termo muito mais substancial, impositivo.
Sigo muitos tradutores nas redes sociais, e vou apanhando
pelo caminho as cascas de idéias que eles jogam fora. Algum tempo atrás a
tradutora Jana Bianchi, no Twitter, comentava que depois de ver a frase “What
do you mean?!” cansativamente repetida desistiu de traduzir como “O que você
quer dizer?!” e passou a usar “Como assim?!”.
Solução perfeita, porque plenamente coloquial (há alguns
casos em que a outra seria melhor – um juiz interrogando uma testemunha no
tribunal, p. ex.), plenamente “nossa”, e com o efeito extra de manter a
sonoridade do original.
(Digressão: Eu posso cometer erros bobos, mas sempre que
possível gosto de ficar próximo das sonoridades do texto em inglês – sonoridades
vocálicas ou consonantais, etc. Quando consigo fazer minha frase traduzida
rimar com o original, considero um pequeno triunfo. É o caso de “What do you
mean?” e “Como assim?”. Necessário? Talvez não. Importante? Sim, com certeza.
Na prosa de ficção principalmente, na prosa literária, há efeitos sinestésicos
constantes, obtidos com os fonemas, com os padrões de ritmo das frases, as
cadências marcadas pelas sílabas.)
E outra coisa. As palavras desencadeiam respostas
diferentes, e o tradutor tem que adivinhar a resposta pretendida pelo autor em
inglês, e tentar descobrir ou inventar um equivalente em nossa língua.
Um dos meus exemplos preferidos é uma frase que vi num
filme legendado na TV. Madrugada, um escritório meio às escuras, dois ladrões
arrombando um cofre. Ouve-se uma sirene aproximando-se à distância, a freada
de um carro diante do prédio. Um ladrão exclama: “Christ! The cops are coming!” A legenda, aplicadamente, traduz: “Cristo! Os tiras estão vindo!”
Está certo? Está errado? Digamos que dá-pro-gasto. O
importante (diria um autor) é que nossa intenção sobreviva.
Mas o tradutor poderia dizer, chegando mais perto do tom
coloquial imposto pela cena: “Meu Deus,
lá vem a polícia!” Em português,
“Meu Deus” é mais frequente como interjeição (de surpresa, susto, desagrado,
etc.) do que “Cristo” ou “Jesus Cristo” (que entra nessa frase como Pilatos no
“Credo”). E um tradutor mais cascudo ou mais irreverente poderia tentar
traduzir como: “Agora fudeu, chegaram os
hômi.”
Está certo? Está errado? Em tradução a gente não procura
apenas o certo em detrimento do errado. Procura o que se “adéqüa” mais, o que
se encaixa melhor, o que dá um recado instantâneo e vai embora, o que reflete
implicitamente o meio social do personagem falante e do contexto em que a frase
é dita...
Traduzir não é transpor, é refazer. A sorte é que não se refaz partindo do zero.