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... e a Terra esturra em chamas de agonia
e mesmo assim não pára de crescer.
O mar, cobrindo a área de lazer,
está da cor de água-de-cimento.
O cortejo parou por um momento
frente ao portão lacrado onde se esconde
a multidão que ouve e não responde
o pesado metal de uma trombeta.
Os ciclones fervilham no planeta
varrendo o pó da civilização.
É sonho de uma noite de verão
quando acordo, com a lua no meu rosto,
e não sei se é Natal ou se é agosto
que me espreita na fresta da cortina?
E um trator enferruja na piscina.
E uma tribo acampou na catedral.
E tem gente trocando o sangue em sal.
E cachorros gritando a noite inteira
que esta vida é um livro com a primeira
e a última página faltando.
Quantas noites me restam, procurando
fazer o sol deter-se antes que nasça?
Escrevendo sextilhas com fumaça?
Martelando a bigorna do juízo?
Ninguém sabe de mim. O que eu preciso
é criar, é ser mais, é seguir sendo
como os galhos de mato que crescendo
dilaceram as teias das aranhas;
é crescer, como crescem as montanhas;
e passar – como passam todas elas.
Como naufragam tantas caravelas,
ou Maceió, que afunda em sumidouros;
o abismo engolindo seus tesouros,
uma cidade a se afogar na terra...
Ou o estrídulo som da motosserra
decepando a medula das sequóias,
e a cidade renderizando as nóias,
e o vírus de plantão se propagando...
e eu correndo, eu fugindo e eu pisando
nos corações de vidro no caminho.
E a multidão me arrasta, e eu sozinho,
e eu nunca mais dormi de olho fechado
e não consigo ficar acordado
(um zumbi esbarrando nas cadeiras);
pandemia comendo pelas beiras
e a alegria embandeirando a sala
e eu fiquei como quem perdeu a mala
numa estação do trem de língua estranha
ou o alpinista que sobe a montanha
e lhe falta a coragem pra descer.
É Natal! Outro ano chega ao Z.
Meu Natal incompleto, esburacado,
falta uma banda sempre, falta um lado,
e o machado do tempo está se erguendo...
Não importa se o prédio está ardendo;
minha vida mental é só em mim.
Me deixem quéto, aqui, no meu cantim,
no aconchego da minha quarentena...
Eu capto o mundo inteiro em minha antena,
e afundarei com esse mundo em paz.
E chegam os bordões celestiais,
Papais Noel, guirlandas, fios de luzes...
Nos presépios, milhares de Jesuses
multiplicam as vidas severinas,
os jingobells, árvores naftalinas,
o vinho sub-20 em cada taça,
o brinde, a selfie, o riso, a uva-passa,
a dor entrelaçada à esperança
(quanto livro perdeu-se na mudança!)...
Passou um ano, e chega mais um dia...