Uma coisa que nem sempre se fala sobre a literatura de Jorge Luís Borges é o fato de que grande parte dela consiste numa espécie de jogo, de brincadeira, ou de diversão do autor com o tema que está tratando.
Borges consegue reunir em sua literatura dois aspectos que em geral se cancelam mutuamente: leituras amplas, e precisão de detalhe. Sempre leu, e sempre leu atentamente (é o que fica visível no que escreve). Sua erudição não foi adquirida a contragosto, como a de tantos diplomados. (Borges não tinha curso superior; tinha mais ou menos o equivalente ao nosso “2º. Grau completo”.)
Muitos leitores se tornam eruditos devido ao prazer de ler. Começam a curiosar pelo prazer de curiosar. Entram nos dicionários, nas enciclopédias e nos almanaques com o mesmo espírito distraído e atento de quem passeia, com as mãos nos bolsos, sem pressa, numa cidade desconhecida: “Onde será que vai dar aquele beco tão interessante?...”
Malba Tahan, um dos autores clássicos da juventude brasileira, tem um conto chamado “O Sábio da Efelogia” (em Maktub, 1935). Entre os hóspedes de um hotel, destaca-se um homem de origem russa, que foi prisioneiro político, e que apesar de muito reservado participa da conversa, muitas vezes dando mostras de uma vasta cultura, pois discorre com fluência sobre geografia, literatura, cultura oriental, astronomia...
O narrador se espanta com aquilo, e o homem responde com uma risada:
— Qual, meu amigo! — obtemperou ele, amável, batendo-me no ombro. — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um professor. Eu pouco sei, ou melhor, nada sei. Não reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam todas pela letra F. Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra F.Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?— Eu lhe explico — acudiu com bom humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado e vivo do comércio do fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela em que me puseram, deixou-me como herança os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia um pouco esse idioma, e como não tivesse em que me ocupar, li e reli centenas de vezes as páginas que possuía. Eram todas da letra F. Ao final, fiquei sabendo muita coisa; tudo, porém sem sair da letra F: fá, fabagela, fabela, fabiana, fabordão.
Há sem dúvida uma
sincera ironia por parte do prof. Julio César Mello e Souza (o nome verdadeiro
de “Malba Tahan”), que encerra o conto dizendo:
Ele era precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra F de uma velha enciclopédia.
Curiosamente, Borges recorre a atalhos semelhantes, o que em nada diminui a eficácia do seu processo criativo. (Se bem que não a originalidade – o que ele faz, muitos fazem também.) A coisa mais difícil que existe é ir a um dicionário ou uma enciclopédia para consultar um verbete e não dar uma olhada rápida nos verbetes que estão em volta. É claro! Tudo é lucro. Tudo é estudo, e se for um estudo pelo mero prazer de “ficar sabendo”, melhor ainda.
John T. Irwin, no seu excelente estudo sobre Borges (The Mystery to a Solution: Poe, Borges and the Analytic Detective Story, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1994) bota seu chapéu de detetive e rastreia algumas leituras de Borges durante a composição de um dos seus melhores contos policiais, “A Morte e a Bússola” (1942).
No início deste conto ocorre o assassinato de um sábio judeu, o Dr. Yarmolinski, encontrado morto em seu quarto de hotel, em frente à suite ocupada pelo Tetrarca da Galiléia, que, como a polícia já sabia, portava consigo uma verdadeira fortuna em safiras. Yarmolinski é encontrado morto pelos criados, e na sua máquina de escrever portátil há uma folha com uma frase datilografada: A primeira letra do Nome foi articulada.
O “nome” (logo fica claro, por se tratar de estudioso do Talmude) é o nome sagrado de Deus entre os hebreus, o Tetragrammaton.
A investigação progride, por caminhos que não interessa espoliar aqui, por meio do inspetor Treviranus (representando a polícia oficial, de métodos rotineiros) e de Erik Lonnrot, o sherlock local. Eles chegam à conclusão de que três homens deverão ser assassinados pelo que parece ser uma conspiração antissemita. É um detalhe essencial do enredo, detalhe que se baseia numa dúvida: serão três homens assassinados, ou quatro?...
John T. Irwin não deixa passar despercebido o fato de que o nome do Inspetor Treviranus lembra a expressão latina tresviri capitales, trio de magistrados romanos cujo número César aumentou para quatro e depois reverteu para três.
Ele lembra que em 1929 Borges (aos 30 anos de idade) ganhou um prêmio literário e usou parte do dinheiro para comprar a coleção completa (em 2ª. mão) da Enciclopédia Britânica, 11ª. edição, a qual o acompanharia daí em diante.
Irwin observa, então, que nessa edição da Britannica estão praticamente lado a lado os verbetes “tresviri” e “Treviranus” (um naturalista alemão do século 18), bem pertinho dos verbetes “Tetrarca” e “Tetragrammaton” (The Mystery..., págs. 32-33).
Ou seja: Borges, ao consultar um verbete para confirmar algum detalhe, pegava em volta dele algumas dicas de tema, de inspiração, de nome próprio...
Surpreendente? Nem tanto, para quem é um “prestador de atenção”, que é como Jessier Quirino define um poeta. E para quem aprendeu a amar desde cedo as enciclopédias e a cornucópia de inspirações que elas nos fornecem, como Borges recorda, num dos seus diálogos com Osvaldo Ferrari:
Sem dúvida já lhe contei que eu costumava ir com meu pai à Biblioteca Nacional; eu era muito tímido – continuo sendo muito tímido -, não me atrevia a pedir livros, mas, nas prateleiras, havia obras de consulta, de onde eu pegava aleatoriamente, por exemplo, um volume da Enciclopédia Britânica. Um dia, tive muita sorte, porque peguei o volume DR, então pude ler uma excelente biografia de Dryden, sobre quem Eliot escreveu um livro. Depois, um extenso artigo sobre os drúidas, e outro sobre os drusos do Líbano.
Erudição? Talvez, mas uma erudição lúdica, movida pela curiosidade, e preservada pela memória afetiva, para vir ao socorro da imaginação no momento em que ela precisa. E com o auxílio da ordem alfabética – ou da “desordem alfabética”, como o próprio Borges a chamava, por ser um critério de organização que depois de aplicado embaralha tempos e espaços.