Aqui, um álbum-síntese do trabalho do Jaguaribe Carne:
https://www.youtube.com/watch?v=uZS2l4KcKmA
Tocamos naquelas rodas de violão em que o instrumento passa de mão em mão e cada um mostra uma ou duas canções por vez, e que é uma das mais democráticas formas de convivência entre músicos. E o que me chamava a atenção em Chico nem era o violão ou as melodias, que já eram de erguer as sobrancelhas: eram as letras, que mostravam a familiaridade do guri escuro, magro, de cabelos curtíssimos, com o Tropicalismo e os poetas concretistas de São Paulo.
O tempo passa, o tempo voa, Chico sumiu como todo mundo some, e um dia Chico reapareceu como alguns reaparecem. Encontrei com Lenine num show qualquer do Canecão e ele me disse estar chegando de São Paulo, onde tinha ido fazer uma participação no CD de estréia de Chico César, gravado ao vivo.
“Que bom,” falei, “tem músicas legais?” Ele disse “escuta só”, e cantarolou: “Himalaia, himeneu / este homem nu sou eu / olhos de contemplação. / Inca, maia, pigmeu / minha tribo me perdeu / quando entrei no templo da paixão”. E eu pensei: “Danou-se, é ele mesmo.”
O resto é de conhecimento público, e eu vi uma grande justiça poética no fato de Chico, o concretista de Catolé, ter fincado sua bandeira e decolado seu foguete justamente a partir de São Paulo, a cidade dos Campos e espaços.
Chico César, como letrista, tem uma consciência da materialidade da palavra que talvez só alguns charadistas tenham, e só afirmo isto porque minha formação é charadística. A maioria das pessoas vê uma palavra como vê uma pedra: uma coisa inteira, completa, sólida, indivisível. Quem tem formação de charadista (ou de concretista, cujo endereço é na mesma rua) vê a palavra como um Lego de sílabas, de letras encaixadas.
Se alguém me mostrasse o título “A Prosa Impúrpura de Caicó” e me perguntasse: “O que diabo é isso, e quem foi que fez?”, eu diria no ato, “Rapaz, é uma brincadeira com A Rosa Púrpura do Cairo, e quem fez provavelmente foi Chico César.” Como dizia Ariano Suassuna: “Eu sou da tribo; conheço os caboclos.”
E aí Chico me manda uma melodia pedindo uma letra, e a essa altura, graças aos milagres da montagem cinematográfica, já estamos no ano de 2001, e eu saio viajando de avião com meu gravadorzinho de fita cassete rodando, o fio no ouvido, e a melodia tocando em loop até que eu decore e seja capaz de, sem ouvir a fita, ir montando meu Lego e encaixando cada sílaba da letra em cada nota da música.
Era tempo de guerra, era tempo sem sol. As Torres Gêmeas tinham sido pulverizadas em setembro pelos aviões sequestrados, a Amerika arregimentava sua logística para a invasão do Iraque, que aconteceria em março de 2003. A guerra era uma certeza, mas o que mais me remexia a ferida era o fato de estarmos voltando às guerras religiosas, às pelejas da Cruz contra o Crescente, ao mundo alucinatório do Deus dos Exércitos, do Deus do Povo Eleito (e não pode haver mais de um).
O 11 de setembro de 2001, cujos 20 anos foram recordados poucas semanas atrás, talvez seja a data em que começou de fato o século atual (como alguns historiadores dizem que o século 20 só começou de fato em 1914, com a I Guerra Mundial).
Remexendo nas minhas anotações desse tempo, encontrei o último poema que rascunhei antes dessa data, no dia 9 de setembro, e que diz:
Quem era
o homem mais rico da Pérsia
no tempo de Zaratustra?
Quem era o grande general da Itália
quando Dante escreveu a “Divina Comédia”?
Quem era o maior banqueiro americano
no ano em que Poe escreveu “O Corvo”?
Quem era o Presidente da República
quando Augusto dos Anjos
escreveu os “Versos Íntimos”?
Quem é
o homem mais poderoso do mundo
hoje
quando o homem menos poderoso do mundo
acaba de nascer?
Era uma simples reflexão ociosa, sem alvo certo (e boa só
por isto). Dois dias depois, no entanto, os conceitos de poder, nascimento e
morte começaram a ser enviesados pela força gravitacional da primeira explosão
de uma nova guerra, e uma guerra em nome de Deus.
O mundo está cheio de pessoas com fé num Deus que mata com esta mão e perdoa com aquela, como diz o soneto de Ruy Guerra na canção de Chico Buarque (“E se a sentença se anuncia bruta, / mais que depressa a mão, cega, executa, / porque senão... o coração perdoa!”).
O mistério dessa guerra reside todo no lado de lá, no lado do Deus bom e assassino, no lado dos mulás, dos talibãs. Porque do lado de cá eu não preciso de outra explicação senão o preço do petróleo, dos armamentos, das munições, do orçamento do Departamento de Defesa, e assim por diante. Religião também, só que no altar de outro Deus – o Deus Dinheiro, o Deus Número, o Deus Finança. O Deus sem ódio e sem paixões, cujos discos-rígidos gigantescos trabalham 24 horas por dia, refrigerados pelas “águas glaciais do cálculo egoísta”.
Daí surgiu esta letra, a partir de dezembro de 2001, rabiscada devagarinho em aviões, em pousadas, em aeroportos, e gravada por Chico no seu disco Respeitem Meus Cabelos, Brancos, de 2002.
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TEOFANIA
(Chico César /
BT)
(em
"Respeitem Meus Cabelos, Brancos", 2002)
Além do bem e do
mal
com seu amor
fatal
está o Ser que
sabe quem sou.
No tempo que é
um lugar
no espaço que é
um passar
espreita-nos um
olhar criador.
Muitos me dirão:
que não!
Que nada é
divino: nem o pão, o vinho, a cruz...
Outros rezarão:
em vão!
Pois nada
responde e tudo se esconde - em luz...
Deus do
roseiral, do sertão,
do ramo de
oliveira, e do punhal.
Deus dos temporais,
dos tufões,
da dúvida, da
vida e a morte vã.
Quanta solidão e
eu não sei
se, homem só,
suportarei.
Um sinal, um
não,
e silencie, aqui
e além, a dor...
Deus das
catedrais, dos porões,
da Bíblia, do
Alcorão, e da Torá.
Deus de Ariel e
Caliban
da chuva de
enxofre, do maná.
Quanta solidão e
eu não sei
se, homem só,
suportarei...
Um sinal, um
não,
e silencie, aqui
e além, a dor...
Além do bem e do mal...