Dizem que a terceira idade é a época mais adequada para a
gente passar adiante os próprios conhecimentos. Em primeiro lugar, porque a
essa altura já acumulamos uma boa quantidade deles. Em segundo, porque vivemos
cercados de gente que estão encarando pela primeira vez um problema com o qual
a gente convive há décadas. Em terceiro, porque ao transferir conhecimentos
vamos ficando mais leves; asas de anjo são frágeis, não conseguem elevar muito
peso.
Resolvi, portanto, transferir alguns conhecimentos que
adquiri, ao longo da vida, sobre a arte incompreendida de dirigir carro.
1) Escute o carro.
Um automóvel é um conjunto de partes físicas, feitas de
ferro, alumínio, plástico, madeira, cobre, etc. Esses materiais são vítimas de
desgaste permanente durante o uso. Um carro não é feito de pixels luminosos
numa tela. Carro é um bicho analógico. Todo motorista diz a certa altura: “Tou
ouvindo um clac-clac esquisito aqui do lado esquerdo, embaixo...” Um carro não é virtual, ele é “de carne e
osso”, como você.
Ouvir o carro é como encostar um estetoscópio e pedir:
“Diga 33.” Um carro é como um corpo, é cheio
de ressonâncias; de vibrações; de atritos; da expansões e contrações
controladas; de partes encaixadas que não podem ficar chacoalhando impunemente;
de explosões de gases que soam de um jeito quando tudo está bem e de outro
quando alguma coisa vai mal.
Lembre do filme Um
homem... uma mulher... Um piloto de corrida está azarando uma mulher bonita
(Anouk Aimée, linda). Ela lhe pergunta durante um jantar romântico: “Qual a
coisa mais importante, ao pilotar?” E
ele: “O ruído do motor. Houve um cara que mandou instalar tubos de órgão no
escapamento, para sentir melhor como o carro estava respondendo”.
Claude Lelouch, o diretor, não colocou isso de graça. O
cara estava tentando seduzir a mulher, e isto era uma forma velada de dizer a
ela: “Eu sou capaz de ouvir. Eu estou disposto a ouvir você, para saber se está
tudo bem. Ouvir faz parte da minha
vida. Eu gosto.”
Ouça o carro
como se ele fosse uma pessoa, ou como se fosse seu gato, ou seu cachorro, um
ser que não fala a linguagem humana, mas que tem sua maneira própria, seus
barulhinhos próprios para dizer a você: “Ei, eu tou bem, tá tudo legal”, ou
então, “Ai, tou com um problema”.
2) Como fazer
baliza.
Muita gente tem dificuldade de fazer baliza para
estacionar o carro, possivelmente, porque é uma combinação anti-intuitiva de
movimentos, ou pelo menos é o contrário do próprio ato de dirigir. Quando
dirigimos normalmente, nossa visão e nossos movimentos (mãos e pés) convergem
todos para a frente; na baliza, estamos virados para trás e precisamos reconfigurar
as reações imediatas, porque estamos fazendo ao contrário uma parte dos
procedimentos.
A prática da baliza deve ser treinada num espaço aberto,
um descampado, com alguns objetos (caixotes, latas de lixo, etc.) servindo de
pontos de referência. O principal é se habituar à nova relação entre, p. ex.,
girar o volante para a direita e ver o carro fazer algo diferente (quando em
ré) do que faz normalmente.
É preciso encontrar uma sincronia passável entre os giros
do volante, o pisar nos pedais e a avaliação visual de distância e posição.
Esta parte física tem que ser muito treinada antes do indivíduo se meter a
estacionar a cobaia mecânica da Auto Escola no meio-fio de uma rua no mundo
real.
Já que são três sistemas simultâneos (mãos, pés, olhos)
agindo de maneira contraintuitiva, é preciso ver em qual dos três está a
principal dificuldade. Há pessoas que fazem bem o jogo de volante e pedais, mas
tem péssimo golpe de vista para calcular distâncias e deslocamentos. Há outras
que até percebem isso bem, mas na hora de debrear aceleram, ou vice-versa...
Enfim: é um pouco como jogar malabares. Comece aos poucos. Você não pode
começar logo com meia dúzia.
3) Aprenda a se
relacionar
Dirigir no trânsito é relacionar-se o tempo inteiro: com
os outros carros; com pedestres; com motoqueiros e ciclistas; e assim por
diante. Quando dirigimos na estrada, principalmente numa rodovia com pouco
tráfego, é como se o carro fosse um instrumento musical fazendo um solo, onde
depende só de si, tem liberdade e latitude para experimentar, e pode
experimentar aquela breve euforia de um pássaro no espaço.
Na cidade, contudo, é diferente. Estamos cercados por
todos os lados, tendo que vigiar os quatro pontos cardeais sem poder sequer
piscar o olho. Tinha toda razão aquele professor que disse ao aluno: “Dirija
como se todos os outros estivessem bêbados”. Ensinar direção nunca é o
suficiente, ou seja, ensinar a relação do motorista com o carro não basta. Todo
ensino de direção precisa ser o ensino da direção defensiva, das mil maneiras
de evitar choque, colisões, arranhões, fechadas, etc.
Outra coisa: se você dirige automóvel, o que é o mais
provável, não trate os motoqueiros do jeito que os motoristas de ônibus tratam
você. Dê o bom exemplo.
4) Pratique muito
Se você perguntar a um motorista profissional quais são
os tipos mais perigosos de motorista, ele provavelmente mais responder: os
agressivos, os bêbados, e os motoristas de fim de semana.
Os dois primeiros são auto-explicativos, mas, e o
terceiro? O motorista de fim de semana é aquele cara que comprou um carrinho
mas durante a semana vai pro trabalho e volta usando o ônibus ou o metrô. No
fim de semana ele pega o carro pra dar uma volta com a família, e aí começa o
problema.
Muitos desses motoristas nunca chegam a se sentir
completamente à vontade dirigindo. A falta de traquejo os deixa hesitantes,
inseguros. É aquele cara que faz que vai mas não vai, e quando acaba indo
deflagra um coro de buzinas e impropérios. É o que liga a sinaleira e se
esquece, percorre quatro bairros e dezenas de quilômetros piscando sem
perceber. É o que tem dificuldade para dirigir e ler placas ao mesmo tempo, e
cada placa que aparece ele precisa reduzir a velocidade e soletrar os avisos em
voz alta. É o que passa mal uma marcha, dá aquela “rasgada” de cortar o coração
e fica meio minuto olhando para a alavanca de câmbio como se a culpa fosse dela
(e esquece de olhar para a frente).
O mito de que as mulheres dirigem mal foi construído em
cima de mulheres que dirigem pouco. Geralmente dirigem pouco porque o marido
lhes repete o tempo inteiro que elas dirigem mal. E acabam dirigindo mal mesmo,
por nervosismo e, mais uma vez, por falta de prática constante.
O motorista de fim de semana tem medo de ir muito
depressa e causar algum desastre, e muitas vezes acaba por causá-los pelo
simples fato de que numa rodovia de mão dupla insiste em avançar a 60 km por
hora, retendo uma fila de veículos impacientes, até que alguém, desesperado
para ultrapassá-lo, acaba fazendo uma besteira grande.
Um carro é um instrumento, e só funciona direito quando a
gente adquire familiaridade com ele. Paul MacCartney dormia com a guitarra na
cama, Pelé dormia com a bola, e mesmo que você não possa dormir com o carro,
aproveite seu tempo acordado para ganhar mais e mais intimidade com ele.
5) Obedeça ao carro
Dirigir um carro não é comandá-lo como se ele fosse um
mero agregado de matéria morta. É perceber que embora seja uma simples tonelada
de ferro, plástico, etc., ele gera sua própria energia e depois de ligado
comporta-se quase como um animal, meio burrinho mas voluntarioso.
Trate o carro como se fosse um cavalo. Entenda como
funciona. Saiba para que servem aquelas engrizias e aqueles parangolés que tem
embaixo do capô. Servem para alguma coisa, sim, não foram botados ali
simplesmente para boquiabrir os incautos.
É espantosa a quantidade de gente, Brasil afora, que
dirige o próprio carro sem fazer a menor idéia do que acontece no motor, nos
eixos, nos pneus, no sistema elétrico, quando o carro está em movimento. Em
geral a gente ironiza mulher que não sabe trocar um pneu; a maioria desses
engraçadinhos não sabe trocar uma bateria nem desentupir um carburador.
Sinta o peso do carro em movimento como se fosse o do seu
próprio corpo. Deixe o carro se projetar. Ele pesa uma tonelada, e a maneira de
deixá-lo mais leve é colocá-lo em movimento. Há motoristas que têm medo de dar
liberdade ao carro, mesmo numa rodovia desimpedida e sem curvas. Em vez de
acelerá-lo, em vez de passar uma segunda, uma terceira, e deixar que o carro
respire sozinho, ficam dando pequenas pisadas no acelerador jogando o carro em
pulinhos sucessivos para a frente, como se ele estivesse com soluços. Não faça
isso. Sinta quando o peso do carro se projeta por conta própria, e fique apenas
administrando.
O carro é seu corpo, na pista de asfalto. Você é o
cérebro do carro. Dê ao seu carro um cérebro inteligente.