O filósofo Schopenhauer tem um livro famoso, O Mundo como Vontade e Representação (1818). Nunca li esse livro, quem me dera; mas sei que é uma das obras mais citadas dos filósofos daquele século. Tem uma grande influência na literatura de Jorge Luís Borges, por exemplo.
Na verdade, essas pinturas não se apagam nunca. Mudam de rua ou de cor, mas já estão prontas em uma mão, uma caixa de pedaços de giz, um astuto sistema de movimentos. A rigor, se um desses rapazes passasse a manhã agitando os braços no ar, receberia dez francos com o mesmo direito que lhe cabe quando desenha Napoleão. (trad. BT)
No caso do texto escrito à mão, não basta existir a tinta
escura, molemente repousando no tinteiro, naquele pequeno açude hermético de
entropia indiferenciada. É preciso distribuir essa tinta no papel, de maneira a
extrair o Múltiplo e Diferente que está em situação de “possível” dentro daquele
bloco líquido do Uno e Igual. Formar palavras inteligíveis; em essência, um
processo não muito diferente do de distribuir tintas variadas sobre uma
superfície de tela, de papelão ou de pedras de calçada.
Quando comecei a usar computadores (o primeiro que usei
foi em 1991; o primeiro que comprei foi no ano seguinte) entrei em contato com
o conceito de “salvar” um texto. Para mim, isto correspondia a tirar uma folha
de papel da máquina-de-escrever e guardá-la em segurança na gaveta, pronta,
inviolável, fiel a si mesma até mesmo nas linhas canceladas com “xxxxxxxxx”.
Era assim que eu visualizava o processo: dentro do disco-rígido de 64 Mb (o que
eu usava na época, num PC 386) havia minha paginazinha de Word, igualmente pronta
e inviolável.
Aos poucos, fui aprendendo que não é bem assim. Eu vejo
no monitor uma página branca coberta de letras pretas, onde vou digitando, e
novas palavras aparecem, organizadazinhas como as da máquina de escrever, na
fonte Calibri 11, que estou usando no momento. Para mim, esta página aqui tem
uma existência tão física quando a lauda de papel Chamex escrita pelos
martelinhos da minha saudosa Olivetti.
É assim – e ao mesmo tempo não é bem assim.
Vamos pensar na fotografia, só para pegar outro exemplo.
Uma fotografia tirada em câmera digital, e salva num
computador, não tem existência física. Não é um retângulo de celulóide coberto
com uma emulsão química que foi alterada, fervida, queimada, transformada num
breve segundo de exposição à luz; e que depois foi projetada numa folha de
papel coberta com outro tipo de emulsão, e depois esse papel passou por um
banho de líquido “revelador”, e depois outro banho de líquido “fixador”, até
resultar na foto que podemos segurar na mão e mostrar às pessoas em nossa sala
de visitas.
A foto digital não é a mesma coisa que “uma foto de papel
guardada numa gaveta”. O arquivo que mostra a imagem no meu monitor é apenas um
conjunto enorme de instruções microscópicas ensinando a recompor visualmente a
foto no instante em que eu abro o arquivo.
Não existe foto. Existe no meu computador um programa,
que acabei de ativar, dizendo: “Prepare um espaço retangular de X por Y
pixels... Em tais e tais pontos, coloque um pixel azul... Nesses outros, pixel
amarelo... branco... preto... cinza... vermelho...” E a foto se recompõe, como
se estivesse sendo criada pela primeira vez. Cada vez que abrimos o arquivo, e
ativamos esse programa, o programa produz a simulação. Quando desligamos, a
simulação vai embora para sempre, e o programa se recolhe a sua prontidão muda.
Quando Cortázar diz que o retrato de Napoleão já está de
certa forma prontinho-da-silva nos braços do desenhista e na caixa de giz, é ao
programa que ele se refere.
Quando botei o pé pela primeira vez na rápida correnteza
da Internet (em 1994) comecei a ter os primeiros vislumbres dessa idéia de que
o Mundo em que vivemos é uma representação visível de processos, programações,
cálculos e produção de efeitos especiais. Ou seja: o mundo é um videogame.
Schopenhauer se referia à “Vontade” que impulsiona toda a
matéria do Universo a produzir a “representação” material desse impulso. Essa representação consiste em variadas formas que dependem da matéria usada, da função a
que se destinam, do entrechoque de forças que pode consistir num enfrentamento
ou numa harmonia.
Creio que uma pálida comparação, mas não de todo
inadequada, pode ser feita com uma sinfonia orquestral, algo típico da época de
Schopenhauer. A “Vontade” é o impulso da criação musical de se manifesta de diferentes
maneiras, através não apenas dos diferentes instrumentos (sopros, cordas,
teclados, vozes, etc.) como também das complexas combinações de talento
criativo que há em cada compositor.
Como se a Vontade quisesse se exprimir por meio de Frédéric
Chopin e isso resultasse num tipo de música, e ao se exprimir através de
Richard Wagner resultasse em outro. O compositor é, ao seu modo, um
instrumento, um filtro, um conjunto de possibilidades e de limitações. Quando a Vontade se manifesta por meio de cada um deles, os resultados têm que ser
diferentes.
Fernando Pessoa, a quem a leitura dos gnósticos não era
estranha, dizia que “Deus é o Homem de outro Deus maior”. E o Homem pode ser o
“carinha”, o avatar de um Homem maior que se situa um degrau cósmico acima deste
em que nós estamos, e cada um de nós é um desses carinhas que está sendo jogado
no Videogame Megafísico de alguém.
Ou seja: talvez não exista um Deus onipotente, onisciente
e onipresente, mas exista alguém indubitavelmente superior, que elaborou o programa
que nos cria, e gerencia esta simulação que é o Mundo. É outro patamar.