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O pessoal conta que, no tempo em que Campina Grande tinha cinemas de rua, havia um tal de Dr. Gregório, advogado, que morava na Desembargador Trindade. Ele trabalhava a manhã toda no escritório que dividia com dois sócios, no centro. Voltava para almoçar em casa, dormia a sesta, e por volta das 3 da tarde trocava de roupa e subia devagar a Rua Irineu Joffily, rumo ao centro, o que o faria passar obrigatoriamente pelos dois cinemas locais, o Cine Babilônia e depois o Cine Capitólio. O costume dele era comprar ingresso num dos dois (as sessões da tarde eram às 15:30), entrar e assistir o começo da sessão, o cinejornal, os trailers, em pé junto à cortina da entrada. Depois, assistia cinco minutos do filme. Se o filme fosse interessante ele avançava e ia sentar lá na frente. Se achasse o filme chato saía, subia até o Calçadão e passava a tarde tomando café pequeno no São Braz e falando da vida alheia.
Trudi Haasse, veterana crítica teatral de Durban, confessou numa entrevista ao programa Nesta Hora, da TV local, que sua paixão pelo teatro começou, curiosamente, na infância. Trudi tinha uma irmã de dezoito anos; a família, muito conservadora, só permitia que o namorado dessa irmã mais velha a levasse ao cinema se levassem Trudi consigo. O casal de jovens ia ao cinema quase todos os dias, apenas para namorar em paz. A garota, a partir dos oito anos, foi submetida a uma dieta constante de filmes de todos os tipos: dramas, comédias, faroestes, policiais, terror, desenhos animados, crítica social... Quando chegou à adolescência, entrou para um grupo de teatro, tornou-se atriz, iluminadora, diretora, autora, e por fim exerceu a crítica teatral, em alto nível, por mais de quatro décadas. Quando um entrevistador lhe perguntou certa vez por que optou pelo teatro, ela confessou: “Não suporto cinema.”
Quando o Cine Pathé, ali perto da Savassi, funcionava como Cinema de Arte para as platéias belorizontinas, havia um casal que sempre ia nas sessões da tarde. Ele era baixinho mas muito empertigado, vestido sempre de terno preto, chapéu, cavanhaque, uma figura meio anacrônica. Era cego e tinha sempre ao lado a esposa, que o conduzia pelo braço. Ela dirigia o carro, ajudava-o a descer, comprava os ingressos. Uma vez eu estava sentado perto do casal e a ouvi contando o filme a ele. O filme era Tempo de Guerra, de Godard, um filme em preto-e-branco, tela pequena, produção quase artesanal. Ela descrevia paisagens coloridas, em Cinemascope, heroísmos de baioneta em punho, mocinhas tímidas encolhendo-se de susto diante de soldados barbudos, e dava um jeito de encaixar a narrativa com aqueles sons e aqueles diálogos lacônicos em francês. Virei-me disfarçadamente. Ele sorria, de olhos fechados, e a mulher não tirava os olhos da tela, enquanto dizia: “Centenas de soldados marchando num campo nevado... Ah, que céu azul tão belo... agora uma chuva da paraquedas cor-de-laranja...”
Um amigo meu tinha uma tia idosa, em Cajazeiras, que ia religiosamente ao cinema uma vez por ano. O advérbio se justifica, porque ela era muito católica, e toda Semana Santa ia ver A Paixão de Cristo. O filme que ela via era uma cópia de propriedade do cinema, e era sempre o mesmo, bem antigo, aquele filme preto-e-branco, granulado, a imagem meio aceleradazinha. Mas o mundo se moderniza, e teve um ano em que o dono do cinema resolveu inovar, e na Sexta-feira Santa exibiu O Rei dos Reis, filmão cinemascope, colorido, com Jeffrey Hunter no papel de Cristo. Dona Fulaninha foi ao cinema meio no piloto automático, comprou o ingresso sem prestar atenção, mas com cinco minutos de filme retirou-se da sala de projeção e saiu bufando de raiva. Chegou em casa indócil, reclamando da heresia. A família quis acalmá-la: “Mas titia, que que tem que eles resolvam mudar de filme?” E ela, escandalizada: “Que que tem? Botaram um filme de mentira, americano, com um ator fingindo que é Jesus! Eu quero ver é o filme de verdade, o do Calvário, com o Jesus verdadeiro!” Ninguém teve coragem de contar.
Nos velhos tempos, os cinemas principais de Campina Grande tinham três sessões por dia. A matinê, sempre às 15:30; e duas sessões à noite, sempre às 19:00 e às 21:00, a não ser nos casos daqueles filmes que extrapolavam, como E o Vento Levou. Nesse tempo, também, não havia o costume ditatorial de esvaziar a sala após uma sessão. Terminava o filme, acendia-se a luz, e quem quisesse continuar assistindo podia ficar, ir no banheiro, comprar balas na sala de espera, e depois voltava lá para dentro. Muitas vezes fiz isso apenas por causa do futebol: via a primeira sessão completa, esperava para ver de novo o Canal 100 na segunda, e depois ia embora.