Entre os Van Galen destaca-se a jovem Adelaide,
considerada a mais bela de toda a corte, e sua beleza é descrita em termos que
lembram os dos nossos folhetos de cordel. Todas as comparações possíveis com a
natureza, o firmamento, as flores, as pedras preciosas, são chamadas à ação
para descrever a beleza da moça.
Em seguida somos conduzidos a ver de perto um rapaz. Ele
é Ib Angel, jovem e valoroso oficial do exército, primo-pobre de Adelaide e
apaixonado em segredo por ela, desde a infância, consciente de que a distância
de sangue entre os dois não lhe permitiria aspirar a sua mão, mas a relação familiar poderia pelo menos dar-lhe o consolo de serem amigos, serem próximos.
A menos que ele vá lutar na guerra da Europa...
A certa altura, diz a narradora:
Perto do final daquela estação, Ib descobriu que se tornara, de forma inesperada, o herói do dia em Copenhague. Ao amanhecer, depois de uma noite de farra, ele travou um duelo de sabres com o adido militar da Suécia e Noruega...
É possível, sim, passar vinte páginas descrevendo um
ambiente social sem transformar isso num manual sociológico. Ela poderia ter
escrito algo tipo:
No último quadrante do século, a ascensão econômica da burguesia rural, mais tradicionalista e de hábitos mais pragmáticos, a fez travar uma aliança de interesses com a burguesia urbana de Copenhague, mais cosmopolita e mais próxima aos centros de poder. As conflagrações militares da Europa contemporânea decorriam longe do país, mas no equilíbrio instável de forças entre monarquias e republicanos mesmo um apoio de pequena monta poderia fazer pender a balança para um lado. Jovens ambiciosos da nobreza e do oficialato dinamarquês viam nesse momento conturbado a possibilidade de uma ascensão social e política que lhes teria sido impensável em tempos de paz.
Ela não
diz nada disso, ela vai mostrando as conversas nos salões, descreve um pouco
dos hábitos rudes dos rapazes ricos criados em meio aos cavalos e das moças
ricas criadas em meio às costureiras e bordadeiras. Fala das festas
intermináveis, das discussões de salão de chá em que artistas envelhecidos e
espertalhões se grudam na nobreza para divertir suas tardes infindáveis em
troca de um pouco de prestígio e quem sabe de alguns trocados na bolsa.
Vinte páginas de descrição, de rememórias? Por certo, mas
a autora de vez em quando nos dá um cutucão para dizer: “Aguenta aí, que vem
história.” De vez em quando ela larga um aviso do tipo: “Na época em que
transcorreu a história que vamos contar...” É como se dissesse ao leitor: “Sim,
é muita descrição, mas lá na frente vai ficar mais animado.”
Atrair, e afastar-se um pouco. É o jogo de sedução das
debutantes dinamarquesas, cobertas de pérolas e diamantes, e o mesmo jogo que a
baronesa faz com o leitor. O leitor não se afasta porque quem se afasta é ela,
dando-lhe algumas pistas de fatos ou ambientes ou personagens interessantes, e em
seguida indo tratar de um segundo assunto. O leitor a segue até o segundo em
busca de mais alguma migalha do primeiro. E quando ela, num roçagar de saias e
num abanar de leque, dirige-se para o terceiro assunto, já é a lembrança do
segundo que faz o leitor acompanhá-la, obediente, salões afora.
Há uma conspiração de forças que tende a afastar o leitor
do texto o tempo inteiro: a preguiça mental, o desinteresse, o tédio, a
lembrança de um afazer urgente, a proximidade do controle remoto da TV... O
autor (a autora) deve lembrar-se disso o tempo inteiro e não parar um só
instante de dar pequenos puxões na corda de atenção que liga o livro ao leitor.
Não pode deixá-lo ir embora. Tem que prometer o tempo todo, como as jovens
dinamarquesas prometiam algo o tempo todo, com o decote, o sorriso, o olhar por
sobre o leque.
Ou (para usar uma comparação mais próxima da gente)
manter a atenção do leitor focada numa história é como manter no ar uma pipa,
coruja, arraia, pandorga. O vento quer levá-la embora. A linha quer mantê-la
aqui. Na tensão entre os dois, a pipa se ergue, dança, volteia. Cada frase
interessante do texto é um pequeno puxão nessa linha, aumentando a tensão e prendendo
o leitor.
Alguma coisa vai
acontecer, é um dos impulsos essenciais da literatura de ficção. É a percepção
constante de que as próximas linhas, as próximas páginas, nos reservam algo que
não sabemos exatamente o que vai ser, mas que vemos se preparando ao longo de
tudo que lemos antes, daquilo que estamos lendo agora, “vem comigo, vou te mostrar”, diz o livro, e o leitor vai.
A prosa de ficção bem sucedida é aquela que faz a gente agarrar um livro de 400 ou 700 páginas e ler até o fim, porque a cada passo recebemos gratificação suficiente pelo esforço dispendido até ali e ao mesmo tempo recebemos estímulos que nos fazem erguer a cabeça e querer saber o que existe mais adiante. O que vai acontecer depois.
(Karen Blixen)