sábado, 10 de abril de 2021

4692) A piada e o tiro de canhão (10.4.2021)


É uma historieta das antigas, que já vi atribuída a diferentes pessoas. Digamos que tenha acontecido com Chico Anysio. Ele estava na fila de embarque do aeroporto, quando um general o avistou, aproximou-se, os dois já se conheciam de outras paradas, cumprimentaram-se cordialmente.
 
GENERAL – Chico, conte aí uma piada.
 
CHICO – Só conto se o senhor der um tiro de canhão.
 
Todas as pessoas em volta riram, os dois abraçaram-se, despediram-se, embarcaram cada um no seu voo.
 
A verdade é que o general saiu ganhando, porque Chico disse a piada – e o general não precisou (felizmente) disparar canhão nenhum. O episódio, entretanto, ilustra a cilada fatal em que o artista sempre acaba caindo em qualquer cabo-de-guerra com um poderoso. O artista (humoristas incluídos) não resiste à chance de produzir uma obra de arte, mesmo não-remunerada, mesmo que seja uma frasezinha apenas.
 
Digressão: Eu considero a frase, a frase-de-efeito, o aforismo, o ditado, a máxima e outras modalidades como uma forma de arte literária, SIM. É uma forma híbrida (porque se mistura e se confunde com o verso, o diálogo ficcional, etc.), e uma forma acessória, secundária, porque geralmente vem apensa, ou seja, pendurada, a uma forma maior, seja o conto, o artigo, o poema, o ensaio, o diálogo teatral. Mas a frase perfeita, lapidar, irretocável, escrita e publicada a sós, é uma forma de arte, SIM. 
 
Pois bem: quando um bom fazedor de frases tem uma idéia para uma frase boa, eficaz, ele não resiste a dizê-la, mesmo que isso signifique, como no episódio de Chico Anysio, uma vitória de Pirro, em que o sujeito ganha mas logo em seguida percebe que sofreu uma derrota maior que essa vitoriazinha momentânea.
 
Este fenômeno está incluído na mesma categoria de outro caso proverbial: o sujeito que “perde um amigo mas não perde uma piada”. Quando a piada ocorre ao piadista, ele tem a compulsão irresistível, neurótica, freudiana, de dizê-la – mesmo que isto signifique perder uma amizade. Mesmo que signifique perder uma queda-de-braço simbólica com um general.
 
Que importância tem isso?
 
Esse fenômeno está ligado a outro aparentemente muito distante, que é O Mito Do Artista Sofredor. O mito do poeta que escreveu seus melhores versos quando passava fome – mas não conseguia parar de escrever. Escrever era mais importante do que alimentar-se. Tendo a idéia para um soneto perfeito, ele passava dias trancado na água-furtada, sem ânimo para mendigar um pão, mas rabiscando, rasurando e alinhavando uma ou duas linhas por dia, até a obra-prima ficar pronta.
 
Muitos artistas bradam aos quatro ventos que a criação é algo que ferve nas suas veias, e que não criar, para eles, é sinônimo de morrer.
 
Os produtores-executivos leem essa entrevista no jornal, e pensam: “Ótimo, vou cortar metade da verba, visto que ele ‘não consegue deixar de ser criativo’”.
 
É diferente o caso dos artistas “meio mercenários”. Feito aqueles diretores de cinema que mandam parar a produção no instante em que uma parcela do dinheiro atrasa. “Volta todo mundo pro hotel. Só tem filmagem quando o dinheiro aparecer.” Para algumas pessoas, é um interesseiro, um prostituído. Para outras, é um sujeito prático: ele sabe que só assim se negocia com produtores – interrompendo a produção.
 
Chico Anysio poderia ter dito: “Não leve a mal, General Fulano, mas eu só conto piada para quem paga o meu salário, que no caso é o doutor Roberto Marinho”. Mas não, a mente dele era formatada para ter sempre uma piada pronta na ponta de língua, e o general talvez fosse perceptivo o bastante para saber disso.
 
Tem outra piada antiga, que mostra os perigos dessa compulsão. O Bobo-da-corte está conversando com o Rei e no meio da conversa diz: “Às vezes uma desculpa é pior do que uma ofensa.”  O Rei não vê sentido nisso e diz: “Você tem dois minutos para demonstrar isso, senão mando cortar sua cabeça.”  O Bobo fica meio desconcertado mas, um instante depois, o Rei dá-lhe as costas para falar com o Grão-Vizir, e o Bobo enfia o dedo na sua bunda. O Rei dá um pulo enorme, indignado, e o Bobo diz: “Desculpe, majestade, pensei que fosse a bunda da rainha.”
 
Neste segundo caso, o Bobo soube reverter a provocação do poderoso e saiu ganhando. (Pelo menos simbolicamente – a piada termina aí, sem registrar a reação final do Rei.) Ele tinha feito uma observação não-engraçada. O Rei questionou o que ele disse, fez-lhe uma ameaça... e só então a verve piadística entrou em ação, com uma dupla vingança, porque envolveu com seu deboche tanto o Rei quanto a Rainha. Já que um Bobo-da-corte tem salvo conduto para dizer o que quer, ele sentiu firmeza e pegou pesado.
 
Embora talvez a gente possa imaginar que Chico Anysio também saiu ganhando alguma coisa. Ele disse a piada. O general não deu o tiro de canhão. A piada faz parte da vida, faz parte das conversas entre amigos e conhecidos, piada é coisa que se diz na casa da gente, no colégio, no trabalho, na mesa de bar. Uma coisa que até um general entende, até um general aprecia.
 
Tiro de canhão é diferente. Tirando os treinamentos, tiro de canhão se dá em guerra, em golpe, em atentado, em revolução, e seu objetivo é um só – matar e destruir.
 
Talvez Chico Anysio estivesse sugerindo, veladamente:
 
– Digo a piada sim, general, e deixo de graça, como os vendedores de amendoim dão uma derramadinha de graça em toda mesa de bar, mesmo sabendo que a maioria daqueles cervejantes não vai lhe comprar um pacotinho. A derramadinha é para o cara ficar lembrando o quando é bom comer um amendoim salgado com uma cerveja bem geladinha. Se não comprar hoje, compra noutro dia. E se não comprar a mim, compra a outro vendedor tão precisado quanto eu, e a vida é assim mesmo, os rios só correm para o mar, e talvez o pacote que eu vendo hoje seja resultado de uma derramadinha que um colega deixou na mesa desse cara duas noites atrás.
 
A piada era para dizer: “Está vendo, general, como uma piada é algo mais simples, mais agradável e mais nosso do que um tiro de canhão? Está vendo como o senhor precisa do meu produto, e eu não preciso do seu?”.