Na ficção científica e na fantasia é comum a invenção de
cidades e países fictícios, pois a gente parte do princípio de que está
descrevendo outros mundos, paisagens que existem somente na invenção.
O mais interessante é que o romance policial faz a mesma
coisa. Vejam só. Um gênero que em princípio é tão apegado ao realismo, tão
refratário ao fantasioso. No romance (conto, etc.) policial existe até uma
espécie de “horror ao sobrenatural”, que é o oposto simétrico do “horror
sobrenatural” de Lovecraft e Stephen King.
O romance policial é realismo puro, feijão-com-arroz
puro, materialismo puro, um gênero escanchado confortavelmente na sela do
raciocínio, da experimentação, da invariabilidade das leis da matéria. Quando o
sobrenatural ou o fantasioso aparecem na primeira metade do livro, é apenas para
receberem um desmentido cabal e arrasador na segunda metade. Foi assim que
autores clássicos como John Dickson Carr e Ellery Queen fizeram sua fama.
E no entanto... Por que motivo existem tantas cidades
imaginárias no romance policial?
Em parte, talvez, por discrição. Imagino que tenha sido
esta a motivação principal de Agatha Christie ao inventar o vilarejo de St.
Mary Mead, onde vive a simpática Miss Marple, a detetive amadora mais famosa da
literatura. É um típico vilarejo inglês, a não ser pela assustadora percentagem
de homicídios misteriosos que acontecem em seus chalés. Talvez por isso mesmo Dame Agatha tenha preferido inventá-lo,
ao invés de ambientar as histórias num vilarejo real, que podia adquirir má
fama.
Nos websaites dedicados à autora, há mapas e guias do
“vilarejo”, indicando ruas principais, lojas, residências de personagens,
locais dos crimes mais notórios.
Menos famosa, mas igualmente simpática aos meus olhos, é
a cidadezinha de Wrightsville, onde Ellery Queen ambientou alguns dos seus
romances mais engenhosos, como O Crime da
Raposa (“The Murderer is a Fox”, 1945), Ten
Days Wonder (1948, filmado por Claude Chabrol como “La Décade
Prodigieuse”), e outros. É uma cidadezinha da Nova Inglaterra, clima um pouco
frio, levemente conservadora... Algo parecido com Nova Friburgo no Estado do
Rio, ou com Areia ou Bananeiras no brejo paraibano.
(mapa de
Wrightsville)
Francis M. Nevins, o grande analisador da obra de Queen (Royal Bloodline, 1974) descreve a cidade
como uma pequena comunidade onde todo mundo se conhece e se relaciona, e que
com a II Guerra Mundial sofreu um boom
econômico. Um microcosmo do que a América tem de melhor e de pior.
Diz Nevins que o autor citou como inspiração o clássico Spoon River Anthology (1914-1916), de
Edgar Lee Masters, uma série de epitáfios em versos onde se contam os crimes e
malfeitos da cidadezinha de Spoon River. O próprio Nevins aponta outra
influência: a peça Our Town (1938) de
Thornton Wilder, de onde Queen parece ter tirado muita inspiração, fazendo sua
Wrightsville se parecer com a Grover’s Corner da peça.
Raymond Chandler se orgulhava de ter colocado na
literatura norte-americana o jeito californiano de falar – as inflexões, as
gírias, o vocabulário, a fala coloquial de diferentes classes sociais. Seu
escrupuloso realismo (ele de fato pesquisava código penal, funcionamento de
delegacias, legislação sobre detetives particulares, etc.) não o impediu de
recorrer a ambientações fictícias.
Muitas histórias de policiais corruptos de Chandler são
ambientadas em Santa Monica, uma cidade do condado ou município de Los Angeles.
Certamente para não ferir suscetibilidades, Chandler criou o nome “Bay City”,
embora todas as descrições físicas correspondam a Santa Monica. Um artigo de Loren
Latker no saite Shamus Town reproduz
um diretório (espécie de guia telefônico da época) onde Santa Monica é
classificada como uma das “cidades da baía”, o que pode ter dado a Chandler
essa dica.
São muitos os exemplos e não vou aumentar muito a lista. Ainda
posso citar o autor sul-africano James McClure, que depois morou nos EUA e na Inglaterra.
McClure era jornalista, e sua obsessão pela verossimilhança era tal que
produziu dois livros de não-ficção sobre o funcionamento real de delegacias de
polícia, uma em Liverpool (Spike Island,
1980) e outra em San Diego, California (Copworld,
1984).
Sua série de romances sobre uma dupla de policiais
interraciais (Kramer, um afrikaner, e
Zondi, um bantu) é ambientada na África do Sul; mas na cidade imaginária de
“Trekkersburg”, uma versão ligeiramente adaptada de sua cidade natal,
Pietermaritzburg.
“É a minha visão da cidade, e sendo assim não está sujeita às
limitações reais dela. Quando eu quero mudar um pouquinho alguma coisa, mudo, e
pronto.”
Essa parece ser a motivação para escritores tão realistas
preferirem cidades imaginárias. A cidade real, principalmente em romances onde
se desce a um nível de detalhe muito grande, torna-se às vezes difícil de
manejar. É preciso checar cada detalhe. É preciso saber a mão do tráfego na Rua
Tal de um bairro distante. É preciso saber até que horas fica aberto um posto
médico, um mercadinho, um restaurante – porque quando se lida com lugares
reais, há sempre leitores nerds que
saem de caderneta em punho conferindo cada detalhe.
Quando a cidade é imaginária, o autor tem liberdade de
movimentos. Claro que se o romance dele é ambientado em Nova York ele tem de
graça o charme de se referir a Times Square ou à Broadway. Mas se ele é um bom
autor, basta chamá-las de Space Square e de Mainway, e presto! – pela descrição o leitor reconhece o ambiente, e deixa-se
levar.
(Evan Huner, “Ed McBain”)
É mais ou menos o que faz o grande Evan Hunter, que sob o
pseudônimo de Ed McBain criou a série do “87º. Distrito Policial”, muito
publicada no Brasil. A cidade é visivelmente Nova York, mas ele a chama de
“Isola” (=ilha).
Quando eu comecei a escrever o primeiro livro [“Cop Hater”, 1956] percebi que estava ligando para as
delegacias de dez em dez minutos para checar algum detalhe. Tinha assinado um
contrato para três livros, e pensei: “Isso vai ser uma dor de cabeça danada. Vou
passar mais tempo conversando com os caras do que escrevendo o livro.” E
pensei: “Vou ambientar isso numa cidade imaginária”, e acho que foi uma
contribuição única na literatura detetivesca.
Não tão única assim, como já se viu mais acima, mas sem
dúvida a contribuição de McBain (e seu elenco de detetives realistas, bem
delineados, literariamente vigorosos) misturou bem o ambiente imaginário e os
procedimentos reais. Com um detalhe a mais:
Eu invento comunidades que não existem, e fatos históricos sobre essas
comunidades. Tudo mentira, mas me divirto muito com essa parte – imagino como
um bairro veio a receber aquele nome, onde estavam os britânicos na época da
revolução, etc., e é tudo inventado.
Parece o melhor-de-dois-mundos, e de fato acaba sendo,
muitas vezes. Embora haja algumas precauções a serem tomadas.
(Ruth Rendell)
Ruth Rendell, uma das Grandes Damas do Crime Britânico no último
meio século, ambientava as histórias do seu Inspetor Wexford numa cidadezinha
inventada, Kingsmarkham, no condado de Sussex. Wexford estreou em From Doon With Death (1964). Suas
investigações não se resumem à cidade natal; ele chega a viajar aos EUA para
investigar pistas, e também resolve mistérios quando está de férias no
Mediterrâneo.
E quanto à ciade de Kingsmarkham? Diz a autora:
Fica no Sussex, e é inteiramente ficcional. Quando criança, vivi por
algum tempo em Midhurst, que é no Sussex, e baseei minha cidade no que lembrava
de lá. Depois lamentei ter usado o Sussex, porque há outros condados que eu
conheço bem melhor.
As cidades imaginárias servem ao autor de romances
policiais como uma matéria plástica que ele pode moldar ao seu gosto e sua
conveniência. Muitas vezes um autor carioca ou belorizontino gostaria de ambientar
uma cena do seu livro numa ponte sobre o rio... mas esta é uma paisagem que a
cidade não tem. Um romance paulista precisa fazer uma certa ginástica para ter
uma cena de praia. E assim por diante.
A cidade imaginária pode nos dar incontáveis alusões a
uma cidade real a ponto do leitor, nas primeiras dezenas de páginas, perceber
que aquilo é uma espécie de Londres, uma espécie de Salvador, ou de Buenos Aires. Entendendo isso, o leitor se
instala num quadro de referências típico da cidade real... e ao mesmo tempo o
autor tem liberdade bastante para inventar na sua cidade fictícia alguma
paisagem que lhe dê na telha (um rio com pontes, um bairro chinês, uma mata
urbana, um cais do porto), ou pequenas mudanças úteis no mundo civil
(legislação sobre crime, porte de armas, casos famosos do passado, etc.).
(As citações dos autores são extraídas de The Craft of Crime -- Conversations with Crime Writers, de John C. Carr, Houghton Mifflin, 1983, tradução BT).