Vendo um documentário sobre o diretor Billy Wilder,
austríaco de nascimento, e que só migrou para os Estados Unidos quando já era
diretor de cinema profissional, fiquei sabendo que não foi nos EUA que ele
ganhou esse prenome tipicamente norte-americano. Foi sua mãe que o batizou
assim, porque era fã das aventuras de Billy The Kid.
É um desses casos de nome próprio de rara
improbabilidade, porque se alguém me chamasse para fazer uma aposta eu diria
que o nome de registro dele devia ser Wilhelm Wilder ou coisa parecida.
O nome era real, porém. Nomes de pessoas reais são
atribuídos assim, muitas vezes por uma veneta, um palpite ou uma admiração dos
pais, a quem geralmente cabe essa escolha.
Nomes de personagens são uma questão totalmente diversa,
porque o leitor sabe que está lendo uma história fictícia e que todos aqueles
nomes foram escolhidos pelo autor. De acordo com o ambiente, a época, etc., os
nomes têm que ter uma certa verossimilhança, para não introduzirem um ruído na
narrativa. E mesmo quando isso acontece, o ruído tem que ser plausível.
Uma vez eu estava hospedado numa casa e sentei para tomar
café. A cozinheira estava preparando alguma coisa. O filho dela, um menino de
uns dois anos, começou a chorar, fazendo manha por alguma coisa. E ela disse:
“Pára com isso, Van Básten! Não tem
motivo nenhum pra ficar chorando!”. Eu
perguntei: “O nome dele é Van Básten? Por que?”
E ela: “É o pai dele, que só quer saber de futebol.” Para quem não sabe,
o holandês Van Baasten foi um dos grandes atacantes do futebol europeu nos anos
1980-1990.
(Van Baasten)
Existe verossimilhança nesse nome? Pra mim, basta ser
verdadeiro para ser verossímil, mas se fosse num romance eu iria achar que era
piscadela-de-olho do autor, pra mostrar que entendia de futebol.
O violonista Baden Powell foi batizado com esse nome em
homenagem ao cara que fundou o Escotismo; hoje em dia, pelo menos no Brasil,
ninguém sabe quem foi o escoteiro, mas muita gente conhece o músico.
Já vi muitos estrangeiros admirados com a quantidade de
brasileiros cujo primeiro nome é Washington, Wellington, Nelson ou Lincoln. Sobrenomes
ingleses ou norte-americanos são usados aqui como nomes de batismo. Talvez um
leitor distante, na Tailândia ou no Irã, leia um livro brasileiro e ache
forçada essa alusão histórica, sem perceber que aqui no Brasil é mais fácil
você conhecer um cara chamado Washington do que um chamado Bráulio.
Como transpor essa sem-cerimônia para a ficção? Rubem
Fonseca tem um conto ótimo (“A Força Humana”) em que o narrador pergunta a um
cara como é o nome dele. O outro responde: “Vaterlu. Se escreve com
dábliu.” É plausível, sim, no contexto
antropofágico brasileiro, inclusive no detalhe da grafia, que pessoas assim já
mecanizaram mentalmente, repetem toda vez essa instrução pronta.
Como o personagem de Orígenes Lessa (“Nós, o mar e
Conceição”), que se apresenta como Fulano de Tal Cavalcanti, e sempre insiste:
“Com i... com i...” Isso é plausível,
isso é brasileiro, não é por outra razão que o “Big Brother” da TV Globo teve agora uma participante chamada Karol Conká. Nome que faz parte do espírito da
língua neste começo de século, de um fervilhar constante de informações, de uma
cultura de individualidades lutando para aparecer mais que as outras,
precisando de uma brand, de uma tag, de um traço diferenciado para não
morrer invisível no meio de um milhão de seres igualmente diferentes.
(Scarlet e Abidoral)
Tem pessoas que têm o que a gente chama de “nome de
personagem”, porque são nomes fora do comum, com sonoridade especial, com
alusões, etc. Eu sempre achei que Scarlet
Moon de Chevalier, nome da saudosa jornalista carioca, merecia ser nome de uma
personagem daqueles romances tipo Rebecca. O cantor e compositor cearense Abidoral
Jamacaru tem esse nome nordestiníssimo que além do mais é um octossílabo
perfeito. Quem botasse nomes assim num personagem talvez achasse estar forçando
a barra; mas esses são nomes reais, de documento, de lista de chamada no
colégio.
Não somente aqui no Brasil, claro. Eu já sugeri que se
fizesse um filme sobre a vida do cantor Engelbert Humperdinck e quem o
interpretasse fosse Benedict Cumberbatch. Isso é lá nome de gente?! Me traz à
memória o começo do romance The Voyage of
the Dawn Treader, de C. S. Lewis, que principia assim: “Havia um rapaz que
se chamava Eustace Clarence Scrubb, e ele era quase merecedor disso.”
Carlos Drummond tem um poema famoso, “Quadrilha”, onde
cada personagem se apaixona por alguém que já está apaixonado por outra pessoa.
Os nomes deles são João, Teresa, Raimundo, Maria Joaquim, Lili... e no final
aparece um tal de J. Pinto Fernandes cujo nome é dolorosamente real, veraz,
verossímil, nome de um brasileiro de carne, osso e chapéu. É o personagem
realista que entra num poema romântico ao qual não pertencia e leva consigo uma
bonitinha.
Eu tenho uma certa aversão a personagens de romance que
ostentam nomes com referências clássicas evidentes demais. Hércules, Orestes,
Narciso, Afrodite, Orfeu... quando numa história moderna aparece um personagem
assim, eu sempre acho que o autor está querendo dar um upgrade num personagem
que não se sustenta por si mesmo. Gosto de personagens que têm nomes “pela
primeira vez”, e tornam-se tão fortes que esse nome não terá talvez uma segunda
aparição. Não imagino alguém de hoje batizando um personagem de Riobaldo,
Diadorim, Policarpo Quaresma, Macunaíma...
Em A Ascensão do
Romance (“The Rise of the Novel”, 1957), Ian Watt discute justamente essa
transição, por volta do século 18, entre os nomes de personagens de ficção que
pretendiam ter um caráter alegórico, ou meramente alusivo, e os nomes que
buscavam apenas uma certa verossimilhança. Que parecessem “nome de gente”, como
se diz.
Ele analisa principalmente, nesse livro, as obras de
Daniel Defoe (Robinson Crusoe, Roxana, etc), Samuel Richardson (Clarissa, Pamela etc) e Henry Fielding (Tom
Jones etc). São obras fundadoras do romance moderno inglês, e Watt examina
justamente os modos de narrar aperfeiçoados ou inventados por ele e que
desembocaram no grande romance realista do século 19. A nomeação dos
personagens faz parte desse processo.
Um dos argumentos de Watt é mais ou menos o de que a
literatura anterior a essa época tinha intenções alegóricas, universalizantes, e
isso se refletia em seus nomes. Também houve isso na literatura brasileira: o
costume de batizar um homem simples e honrado de Seu Inocêncio, uma esposa
casta de Dona Fidélia, um indivíduo truculento ser chamado de Brutus e assim
por diante. Nomes próprios que universalizavam o caráter; quem estava ali não
era uma pessoa específica, era um “tipo”.
(Daniel Defoe, 1660-1731; Samuel Richardson, 1689-1761;
Henry Fielding, 1707-1774)
Diz ele:
Defoe usa os nomes próprios de modo displicente e às vezes
contraditório; porém raramente escolhe nomes convencionais ou extravagantes (.)
A maioria dos seus personagens, como Robinson Crusoe ou Moll Flanders, tem
nomes e alcunhas completos e realistas. [Em Samuel Richardson] as conotações românticas de Pamela esbarram
no sobrenome comum de Andrews; Clarissa Harlowe e Robert Lovelace são batizados
adequadamente; quase todos os nomes próprios de Richardson, de mrs. Sinclair a
sir Charles Grandson, parecem autênticos e condizentes com a personalidade de
seus portadores. (trad. Hildegard Feist)
Era uma época em que a literatura de ficção se propunha a
criação de indivíduos plausíveis, ambientes plausíveis, acontecimentos
plausíveis, num esforço semelhante ao da pintura figurativa quando começou a
dominar a reprodução fiel das imagens conforme nossos olhos as percebem, pelo
uso da perspectiva, do sombreado, etc.
Não que, como vimos no caso de Richardson, não haja lugar no romance
para nomes próprios que de algum modo são adequados à personagem em questão,
porém essa adequação não deve interferir na função primordial do nome: mostrar
que a personagem deve ser vista como uma pessoa particular, e não como um tipo.
(Cap. 1, C)
Embora geralmente a crítica trate isso como uma evolução,
nenhuma função passada se perde de todo. Existe espaço, sim, para personagens
alegóricos que não representem um ser humano real, mas uma característica do
caráter individual ou do papel social que ele representa.
Se Ariano Suassuna
chama seu rico avarento de Euricão (O
Santo e a Porca) o duplo sentido desse nome certamente não lhe escapou; mas
quando chama outro de Clemente Hará de Ravasco Anvérsio (no Romance da Pedra do Reino) o que há de
sugestivo em cada termo acaba se amalgamando num ideograma único e raro, um
personagem único e irrepetível como um ser humano, por mais que esteja
transfigurado pelo estilo régio do amanuense.
(”A Pedra do Reino”,
imagem de Carlos Bêla, TV Globo)