Vi dias atrás, graças aos prestimosos serviços de
streaming e torrentes que circulam pela Internet, um filmezinho sessão-da-tarde
que não conhecia ainda: Sortilégio de
Amor (“Bell, Book and Candle”, 1958) de Richard Quine, um habitual diretor
de comédias leves de Hollywood. Um filme divertido, sem nada de mais, mas com
uma boa direção de arte, bom elenco e alguns toques de humor.
Acontece que o casal romântico do filme é interpretado
por James Stewart e Kim Novak, que no mesmo ano de 1958 filmaram juntos Um Corpo Que Cai (“Vertigo”, de Alfred
Hitchcock). E não tem como não ver nesse filme uma espécie de “lado B” de Vertigo, porque é uma história que corre
em paralelo com a história do outro filme, como se um fosse uma paródia
distante do outro.
Em Um Corpo Que Cai,
Stewart é o detetive Scottie Ferguson, que se apaixona pela misteriosa Madeleine
Elster (Kim Novak), uma mulher envolvida num mistério sobrenatural.
Em Sortilégio de
Amor, Stewart é o editor literário Shep Henderson, que se apaixona pela
misteriosa Gillian Holroyd (Kim Novak), uma mulher envolvida num mistério
sobrenatural.
Esta é a situação básica das duas histórias de amor. Uma
é trágica, a outra é uma comédia. Na primeira, tudo dá errado; a segunda tem um
happy-end típico das comédias
românticas hollywoodianas.
Pelo que apurei, Um
Corpo Que Cai foi filmado primeiro; já estava em exibição quando começou a
produção de Sortilégio de Amor. Os
dois filmes foram feitos através de acordos de camaradagem entre dois grandes
estúdios. Kim Novak era contratada da Columbia Pictures, e foi emprestada à
Paramount para fazer o filme de Hitchcock. James Stewart apareceu nos dois
filmes com contratos independentes.
Em Um Corpo Que Cai,
Scottie é um policial que sofre de acrofobia, medo das alturas, “vertigem”. Em Sortilégio de Amor, Shep é um editor que
publica livros sobre a feitiçaria mas se recusa a acreditar nela.
No filme de Hitchcock, o detetive é chamado para
investigar o comportamento da esposa de um conhecido, que parece estar sendo
possuída pelo espírito de uma mulher morta no século passado. Todo esse clima
de sobrenaturalidade é falso: ele é inventado pelo marido, com a ajuda de uma moça
(Kim Novak) contratada para fingir que é a esposa. O objetivo é ajudar o cara a
matar a própria esposa e fingir suicídio, com o detetive (iludido desde o
começo) confirmando tudo.
No filme de Richard Quine, Kim Novak é uma feiticeira
pertencente a uma família de bruxos, e que vive em Nova York sob a aparência de
uma pacata dona de uma loja de objetos exóticos de decoração. No mesmo prédio
mora James Stewart, editor que publica livros sobre feitiçaria sem acreditar
neles. Os dois se apaixonam, mas brigam quando ele descobre que tinha sido
vítima de um feitiço – gostaria de se apaixonar espontaneamente, e não porque
foi “hipnotizado”. No fim, dá certo.
Em ambos os filmes, Stewart faz aquele seu papel habitual
do norte-americano médio, simpático, boa praça, maridão confiável, meio
assustado diante do sobrenatural que surge em sua vida através da mulher. Seja
como mero pretexto (Vertigo), seja
como um fato real (Sortilégio).
Tudo que dá errado para a vida dele no primeiro filme dá
certo no segundo. Como se o “Roteirista do Mundo” achasse cruel demais o que
James Stewart foi obrigado a sofrer em Vertigo
e dissesse: “Calma, vou colocar você numa história parecida, mas dessa vez tem
final feliz”.
Talvez a melhor cena de Sortilégio de Amor seja a noite em que o feitiço de Kim Novak começa
a agir sobre Stewart. Ela o acha um cara divertido; não está ainda apaixonada
(o filme explica que bruxas não se apaixonam), mas quer conquistá-lo para
vingar-se da noiva dele, que ela descobre ser uma ex-inimiga dos tempos de
colégio. E ela manda o feitço para cima do coitado.
Há uma quebra muito hábil na narrativa. Os dois estão na
sala dela, tomando vinho, num papo meio formal de vizinhos de prédio. Stewart
pede para se retirar, pois é tarde e no dia seguinte ele vai casar com a outra (a ótima atriz, e bela, Janice Rule, de Caçada Humana). Kim Novak abraça o gato
preto que lhe serve de animal totêmico e começa a cantarolar uma melodia que o
deixa perturbado. Ele pega o chapéu e o sobretudo e se dirige para a porta.
Mas... chegando à porta ele se vira, fascinado,
mesmerizado, hesita, e volta para ela. Os dois se beijam. E aí... Há um corte.
Estamos no alto de um dos arranha-céus de Nova York, o dia está amanhecendo. Como
foram para ali? O filme não explica. Stewart pede: “Diga alguma coisa. Quero
ouvir sua voz novamente”. “Gosta da minha voz?” “Gosto de tudo em você. Ainda
não sabe disso?” Os dois ficam conversando fora do quadro, enquanto a câmera,
quase vertical, mostra as nuvens mais abaixo, e lá longe as avenidas cobertas
de neve (é dezembro).
Ele pergunta: “A propósito, onde estamos?” Como se não soubesse como foi parar ali. Ela
ri e diz: “No tipo do Edifício Flatiron. (O famoso ferro-de-engomar
novaiorquino). Você queria estar no topo de um edifício alto. Não tivemos sorte
no Empire State”. “E onde estávamos antes?”
“Na minha casa.” “Por que saímos? » « Você queria dançar na
neve. » Os dois se beijam. Ele tira
o chapéu e o arremessa lá de cima; a câmera segue a queda do chapéu numa bela
panorâmica até mostrá-lo caindo na calçada coberta de neve. Stewart a beija e
diz: “É como se estivéssemos fora do tempo. Sinto-me enfeitiçado”.
Não há como não pensar numa contaminação entre os dois
filmes, uma cena em que Scottie, o detetive de Um Corpo Que Cai, pudesse se apaixonar em paz, ficasse livre de sua
vertigem, conseguisse sentir-se feliz e triunfante no alto de um arranha-céu.
É curiosa essa mistura de temas e situações, em dois
filmes feitos com poucos meses de diferença, envolvendo um casal de atores.
Numa entrevista recente, Kim Novak, que está com 88 anos, lembra com carinho
seus trabalhos com Stewart, e diz que nenhum dos dois se deixou enfeitiçar por
Hollywood.
Ele vivia no meio de toda aquela vaidade e nunca se contaminou. Muitas
e muitas vezes, depois de filmar uma cena, eu e ele simplesmente nos
sentávamos, tirávamos os sapatos e púnhamos os pés em cima de uma mesa, em
silêncio. Ficávamos apenas ali; porque nós dois éramos gente de verdade. É
difícil para mim acreditar que alguém pudesse ter vivido tanto anos em
Hollywood, bem no meio de Beverly Hills, e continuar sendo real. Ele merecia um
troféu só por isso, onde estivesse escrito: “Eu era de verdade”. (Ela sorri
e conclui:) Eu queria ter um troféu
assim, também.
(Sortilégio de Amor)