Julio Cortázar escreveu este romance ainda na Argentina,
pouco antes de se mudar em definitivo para a França, e o deixou inédito, embora
não por desmerecê-lo. Tanto é assim que a edição que li agora (Buenos Aires:
Alfaguara, 1996) reproduz esta apresentação feita pelo autor:
Escrevi O Exame Final (El Examen) em meados dos anos 1950, em
uma Buenos Aires onde a imaginação pouco tinha o que agregar à história para
obter os resultados que o leitor verá.
Como a publicação do livro era impossível então, somente alguns amigos
o leram. Depois, e já distante, soube que esses amigos acreditaram ver em
certos episódios uma premonição de acontecimentos que ilustraram nossos anais
em 1952 e 1953. Não me senti feliz por ter acertado essas loterias necrológicas
e edilícias. No fundo, era demasiado fácil: o futuro argentino se obstina de
tal maneira em calcar-se sobre o presente que os exercícios de antecipação
carecem de qualquer mérito.
Publico hoje este velho relato porque me agrada irremediavelmente sua
linguagem livre, sua fábula sem moral-da-história, sua melancolia portenha, e
também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas ruas.
O livro saiu aqui como O Exame Final, Civilização Brasileira, 1996. Em mais de quinze
saites que consultei, não se informa o nome do tradutor, como aliás é de praxe
no Brasil. Desculpa aí, colega – se alguém tiver o livro em casa, agradecerei a
informação. (Recebo agora o recado de que a tradução é de Fausto Wolff.)
A história transcorre ao longo de um dia e meio, e conta
as perambulações e as conversas de cinco personagens, que discutem
principalmente literatura. Cortázar sempre gostou desses romances sobre grupos
de pessoas que convivem e que discorrem longamente sobre livros, música, algo
de política ou filosofia. É o formato, com variações, encontrado em Divertimento (1949), O Jogo da Amarelinha (1963), 62: Modelo Para Armar (1968), Libro de Manuel (1973).
Os personagens são dois casais (Juan e Clara, Andrés Fava
e Stella) e um amigo chamado de O Cronista, que os acompanha nos passeios e nas
discussões.
A narrativa é linear, sem complicações. Começa no
ambiente de uma espécie de universidade , “A Casa”, onde professores leem obras
clássicas para estudantes. No dia seguinte, Juan e sua mulher Clara devem
prestar ali o exame final. Os dois se encontram ao anoitecer, e logo depois
encontram-se com o casal Andrés e Stella, caminham, pegam ônibus, começam a fazer
paradas por uma sucessão de bares e cafés. Num deles, encontram O Cronista, um
jornalista amigo dos quatro, que se junta ao grupo.
Parece tudo muito normal e muito mainstream, mas a verdade é que os personagens se queixam o tempo
todo de uma névoa misteriosa que está tomando conta da cidade, uma névoa úmida,
pegajosa, que às vezes cheira a fumaça, ou a outras coisas. “Mas não é névoa. Ninguém sabe o que é.
Estão averiguando no laboratório”. Todo mundo reclama. Todo mundo se
conforma.
Se fosse um romance de Stephen King ou mesmo de Neil
Gaiman não passaria batida a ninguém a profusão de comentários sempre
inconclusivos, que mais aprofundam a dúvida do que a esclarecem.
A névoa cheirava a castanha assada, a cloro. “Incrível que possa ser
tão densa.”
Ainda não têm a análise da névoa, mas já houve dois comunicados da
polícia, e uma velha armou um escândalo horrível na esquina de Diagonal e
Suipacha, isto faz meia hora. Histeria a baldes, querido.
À medida que a noite avança e entra pela madrugada, a
discussão literária é permeada por comunicados de que em algumas partes da
cidade o asfalto está cedendo e afundando com automóveis; que a polícia
interditou algumas ruas; que pessoas estão sendo hospitalizadas; postos de
atendimento estão sendo instalados em pontos-chave dos calçadões do centro.
A certa altura, os cinco amigos se dirigem para a Plaza
de Mayo onde uma multidão enorme comparece para ver a exibição de uma relíquia
misteriosa, “o Osso”. É nesse momento que uma parte da crítica identifica a
má-vontade de Cortázar para com o peronismo ascendente dessa época, movimento
que arrebanhou “descamisados” e proletários de todos os lados. Os cinco jovens
intelectuais comentam o mau gosto, a grosseria, a vulgaridade daquela multidão
que montou na praça uma mistura de quermesse, vigília política e manifestação.
Eles entram na fila quilométrica e acabam vendo o tal osso:
Havia um algodão, e o osso em cima. A lanterna produzia umas pequenas
centelhas, como no açúcar. Todos o observaram, e dava para vê-lo muito bem,
apesar de que era quase tão branco quanto o algodão, mas de encontro a ele
parecia quase rosado, com as pontas de um amarelo muito claro. (p. 77,
trad. BT)
Essa surrealista cerimônia popular, para alguns leitores,
prefigurou a vigília do velório de Evita Perón, evento cuja foto ilustra a capa
desta edição, a que li.
Os amigos saem dali, vão para outra praça, compram bebida
e ficam conversando até o amanhecer, quando pegam táxis e voltam para suas
casas. Dormem um sono rápido e no outro dia já estão de pé, sendo que Juan e
Clara continuam preocupados com o exame final que terão de prestar logo mais à
noite.
Vão visitar o pai de Clara, que os convida para assistir
um concerto de música erudita no Teatro Colón. Juan e Clara o acompanham; a
certa altura, no banheiro repleto de homens respeitáveis, encasacados, irrompe
uma briga tremenda, de socos, por causa de um pente preso a uma correntinha,
usado na pia de lavar o rosto; e vão parar na polícia, que logo os dispensa.
Esta pequena aventura de Juan e Clara tem paralelo em
outra peripécia insólita vivida por Andrés na famosa livraria El Ateneo¸onde ele passeia lembrando com
nostalgia seus tempos de estudante “liso”, amontoando moedas para poder comprar
“O’Neill, Vinte Poemas de Amor, Filhos e Amantes...”
Ali ele encontra um balconista conhecido, e comentam a
névoa, que durante o dia não arrefeceu nem um pouco, está “mais pegajosa do que Rachmaninoff”, e aliás o governo adverte, nas
páginas de La Nación:
Previne-se a população que, à espera do resultado das análises que
neste momento estão sendo conduzidas pelo Ministério da Saúde, não se deve
utilizar como alimento os fungos aparecidos durante a noite passada, em muito
pequena quantidade, nesta capital. (p. 200)
Nos andares superiores da livraria, Andrés banca o espião
e acaba presenciando uma cena em que um grupo vigia um homem morto há poucos
minutos, enquanto outros, naquele calor espantoso, lavam o rosto de um em um na
água acumulada numa banheira. Uma cena que não deixa de lembrar a claustrofobia
pouco higiênica dos burgueses aprisionados na Rua da Providência, em O Anjo Exterminador (1962) de Luís
Buñuel.
Existe algo de buñuelesco nesta novela em que a “câmera”
acompanha um grupo de personagens que faz o que pode para manter as aparências
mesmo quando estão envoltos numa situação ameaçadora, incompreensível, sem
escapatória.
Acho que não mencionei dois detalhes importantes.
Primeiro, que rola um clima entre Andrés Fava e Clara, a mulher de Juan, que a
leva inclusive a lamentar-se: “No fundo o
que me magoa é que você e ele não sejam um só, ou que eu não possa ser duas”.
Outro detalhe enigmático é a presença sorrateira e constante, nas pegadas do
grupo, de um amigo deles, Abel, que lhes causa um certo medo, nunca explicado.
Fica a suspeita de que seja um “dedo duro” da polícia, ou um ex-pretendente de
Clara querendo assediá-la.
Os cinco amigos voltam a se reunir, trocam impressões,
vão à Casa para que Juan e Clara prestem o seu exame. Anoitece; um novo episódio
insólito acontece, porque a inquietação nas ruas aumenta, o exame demora a
começar, professores e bedéis entram e saem, conferenciando em voz baixa, os
alunos não aguentam mais de tanta expectativa, e por fim... chegam
funcionários, distribuem a todos eles diplomas de aprovação e os mandam embora.
E o grupo recomeça, exatamente vinte e quatro horas depois,
a peregrinação pelos bares e cafés, sem entender o que está se passando. Todos,
menos Andrés, que chega à conclusão de que é
preciso ir embora de Buenos Aires, e os capítulos restantes do livro
envolvem manobras secretas e clandestinas para uma fuga de barco pelo Rio da
Prata, que não deixa de lembrar aqueles filmes policiais sobre a Resistência
Francesa.
Leitores de Cortázar reconhecerão a atmosfera ao mesmo
tempo descontraída e tensa de Os Prêmios (1960),
onde os passageiros de um cruzeiro marítimo estão todos se divertindo à pampa
até descobrirem que não podem passar para a popa do navio. Mas por que não
podem? Ninguém diz, ninguém sabe, ninguém explica. Começa aí uma tensão que vai
desembocar num desfecho violento.
Cortázar comenta, em algumas entrevistas, que não lhe faz
muita diferença “saber” por que os passageiros não podem ir para aquele ponto
do navio. É aquilo que Hitchcock chama um “MacGuffin”, um mero pretexto, com um
mínimo de explicação, cuja função é gerar a tensão e o desenlace.
Este romance não desmerece em nada os outros livros de
Júlio. Há um volume extraído dele, o Diário
de Andrés Fava (que não li ainda). Foi encontrado nos papéis do escritor
após sua morte. Parece que ele havia recheado El Examen com reflexões literárias de Andrés mas depois achou mais
conveniente transpor esses capítulos para outro suporte. Em Rayuela, ele decidiria ao contrário:
misturar os dois, dando ao leitor a opção de acompanhar cada um linearmente ou
de misturar as leituras.