segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

4674) "Imbiribeira" (14.2.2021)




Nem todo mundo que mora na mesma cidade vive na mesma cidade. “Viver em” é colecionar ambientes, deslocar-se com regularidade de A para B, para C, para D...  Numa cidade, principalmente uma cidade grande, tem gente que se desloca de M para N, de N para O, de O para P... A cidade é a mesma, e as pessoas criam seus mundos paralelos, e se cruzam nas ruas, enquanto se encaminham para os segmentos do universo de cada um.
 
Como no romance A Cidade e a Cidade de China Miéville, onde duas cidades rivais ocupam as mesmas ruas e bairros, e seus habitantes são proibidos de reconhecer a presença uns dos outros.
 
O livro de crônicas de Toinho Castro, Imbiribeira (São Paulo, Ed. Areia Dourada, 2020) recupera a memória pessoal de um bairro do Recife que não me lembro de ter visto cantado em prosa e verso como acontece com Boa Viagem ou Casa Forte.
 
É aquele Recife rigorosamente suburbano e invisível, mero espaço de passagem entre um lugar importante e outro, entre o aeroporto e o manguezal.
 
São aqueles bairros populares que toda cidade tem, e que não entram para a História porque não têm sítios históricos, o que os mergulha num círculo vicioso de anonimato. O que têm? Para mim, que de vez em quando passo de carro voltando do aeroporto, a Imbiribeira tem aqueles enormes conjuntos habitacionais de cinco ou seis andares, com janelas e terraços protegidos por grades, e nas paredes as manchas das infiltrações, das chuvas, das pichações. Varais de roupas estendidas, meninos brincando, mulheres atarefadas, homens entrando e saindo. Poucos espaços de lazer. Muitas antenas de televisão.
 
São aqueles bairros emendados uns nos outros, que me evocam endereços antigos de tios e primos da minha infância: Ibura, Ipsep, Imbiribeira... Como o Fundão ou a Água Fria onde morava minha avó Clotilde, ou o Hipódromo de minha tia Petró.
 
Essa paisagem se espalha pelo Brasil inteiro como um papel-de-parede repetitivo, e não há quem a cante, porque suas belezas são poucas e estão todas na memória afetiva de quem ali viveu.

 
Toinho Castro, editor (com Aderaldo Luciano) da revista eletrônica Kuruma’tá, e meu parceiro em outros projetos (como o Lendário Livro¸2018), juntou suas memórias num livro que mistura crônicas e poemas com esse tema em comum. A infância passada num bairro pobre, sem lazer, sem paisagem, sem alternativas. E sem segurança, porque ali é região tomada ao mar:
 
E lembrando disso penso no quanto estávamos ao sabor das marés, por causa da conjunção das chuvas, com a lua cheia e a preamar, era fatal nossa rua transbordar e a água ameaçar entrar em nosso apartamento térreo; a água barrenta, escura, da rua sem calçamento misturada às águas negras do canal logo adiante, subindo, atraídas pela força da lua acima de nós, para além das nuvens carregadas. E eu ali no mar límpido, sabia que ele era parte do sistema de coisas que deixava minha mãe aperreada. Tudo era uma água só, entranhada no subsolo, por baixo do calçamento, minando na rua Pampulha. A água, a grande narradora da cidade onde vivíamos.
(“O cheiro dos sargaços”, p. 36-37)
 
É um espaço onde a civilização é precária, e de vez em quando uma criança sente aquele arrepio atávico no inconsciente coletivo, sabendo que a Humanidade mal chegou e talvez já tenha que ir embora:
 
Assistíamos TV
e o caranguejo
atravessou a sala,
deixando em todos a sensação
de que estávamos errados,
que ocupávamos
um espaço indevido,
que éramos bandidos,
ladrões, saqueadores de mundo.
(“Poema V”, p. 34)
 
A transição entre crônicas e poemas é meramente formal, porque o tom emotivo-distanciado é o mesmo, a dicção literária é a mesma. Em textos com esse perfil, com esse tipo de voz, a distinção entre a prosa e o verso ocorre apenas (acho eu) porque o livro não é composto de uma assentada. Cada texto foi escrito em seu próprio momento. O momento pedia, num caso, um jorro contínuo de palavras e imagens, e em outro momento pedia um dizer mais compassado, mais medido. Mal comparando, escrever prosa é como andar numa rua, e escrever poesia é como subir (ou descer) uma escada. São dois tipos de deslocamento no tempo e no espaço.
 
Tempo e espaço, aliás, são imagens recorrentes nas lembranças de quem lê ficção científica, como é o caso, e busca nessas imagens fantásticas uma porta de fuga para uma realidade encalhada e sem luz.
 
Certa noite, num bar com uma amiga, Lulu, olhamos para a rua à nossa frente e vimos, num sobrado velho, como pareciam todos os sobrados, uma placa: Clube dos Mágicos. Rimos e nos espantamos... era tarde da noite e ficamos imaginando o que poderia estar acontecendo ali dentro, a portas trancadas, janelas cerradas. A reunião dos mágicos sombrios da cidade, aquela cidade assombrada onde éramos fantasmas.
                Teve essa lua cheia, nascendo no horizonte escuro do mar, do Atlântico. Parecia uma explosão nuclear, como uma bolha alaranjada e eu quis que fosse uma explosão nuclear rompendo o tédio daqueles dias, mas era a lua.
(“Recife”, p. 52)
 
Assim como uma parte significativa do rock inglês ou norte-americano cresceu e proliferou no meio dos bairros operários, massacrados, cinzentos e sem vida, onde jovens sem rumo procuravam canalizar energia, criatividade e frustrações, as grandes cidades daqui fazem surgir essas miúdas religiões de uma dúzia de crentes, reunidos em torno de alguma coisa que produz em todos o mesmo efeito, e que só por isso parece humanizá-los.



Tinha na rua Pampulha
um quarto onde rolava um som,
e eu ficava junto ao toca-discos,
a fonte daquele som,
como se aquilo fosse uma fogueira,
como se fosse as estrelas.
(“Poema XIX”, p. 85)
 
Um Recife desaparecido, por definitivamente irrelevante, para além das pequenas vidas que ali se moviam e dali desapareceram. Meus amigos e eu nos reuníamos às vezes em volta de um bueiro na encruzilhada da rua Pampulha com a rua Itamaracá, para falar sobre coisas  que jamais interessariam a mais ninguém; nossas vidas pequenas e sem esperança na escuridão reinante à nossa volta.
(“Meu Recife é outro”, p. 18)


 
(Rua Pampulha, esquina com Itamaracá)
 
Crônicas e poemas vão passeando assim por esse universo invisível das grandes cidades, o universo onde não ocorre nada que não seja a rotina esmagadora do trabalho, do estudo e da sobrevivência sempre ameaçada. E aqui ou ali brotam as pequenas epifanias de garotos e garotas para quem o dia em que a enchente devastou metade da cidade foi um dia feliz, porque naquele dia, por acaso, eles tinham visto dois filmes num dia só.
 
Sem falar nos encontros (sempre preciosos, para os escravos da rotina) com o estranho, o bizarro, o inesperado: a cheia invadido a padaria e fazendo escorrer rua afora uma frota inteira de pães recém-saídos do forno, ou o rio Capibaribe que certa noite começa a produzir, sabe-se lá de onde, envelopes pardos que boiam na água, “como se uma fábrica de envelopes tivesse explodido ou um caminhão carregado de envelopes pardos tivesse jogado sua carga no rio para fugir da polícia dos envelopes!”
 
Manuel Bandeira foi outro que ao evocar seu Recife evocava as coisas pequenas que tinham importância para ele, e não as coisas grandes que têm importância para quem vê a cidade lá de fora. Abespinhava-se quando constatava as modernizações urbanísticas, as invasões do progresso, um progresso de destruição lucrativa do passado: “Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!”.
 
É o mesmo tom de Toinho, com a percepção de quem viveu do lado do mangue, dos “caranguejos com cérebro”, da umidade ao mesmo tempo fertilizadora e corrosiva. A cidade vai sendo invadida pelo conceito puritano e financista de “limpeza”: “Impressionante como a idéia de limpeza pode ser poderosa, colonizadora e contaminante.”  A utopia da limpeza vira pretexto suficiente para todo tipo de extermínio, como se o passado fosse um tumor que nos constrange diante de um mundo que diz ser mais sadio, “o mundo enquanto porcelanato”.
 
Hoje os prédios nem têm mais apartamentos no andar térreo. No térreo ficam as portarias, e acima das portarias, dois ou três andares de garagens, e só então as casas, evitando o mundo. Todos na torcida por um mundo límpido, branco, imaculado, revestido, recoberto, sem compreender que o mundo é detrito, resto de uma grande e primordial explosão se dissipando universo afora. O universo é uma onda de choque que desarruma. A mecânica celeste é ilusória.
(“Sonho, lama e caos”, p. 33)
 
São forças históricas e econômicas em choque, ou melhor, numa disputa de atrações e repulsões onde milhões de pessoas são apenas partículas impotentes sendo empurradas hoje numa direção, puxadas amanhã para a direção oposta, como as marés comandadas pela lua. Só nos resta navegar, porque não podemos dizer ao mar o que ele deve fazer.