Uma crítica frequente que se faz à literatura policial é
que, terminada a leitura do livro, todo o interesse dele se esgota. Quando
sabemos “quem cometeu o crime”, não temos nada mais a perguntar àquele livro. Ele
vai para o caixote de descarte, e a gente pega o próximo para ler.
Uma maneira possível para evitar isso, por parte do
escritor, seria deixar alguma coisa do livro “em aberto”. Um mistério que se
resolvesse parcialmente, mas que deixasse algumas pontas soltas. Para entender
melhor o que elas significam, seria preciso voltar atrás, reler um diálogo,
conferir uma pista, uma cena...
Jorge Luís Borges sugeria isso em seu famoso conto “Exame
da Obra de Herbert Quain” (em Ficções,
1944). Ele imagina um livro onde, ao chegar ao fim, se diz, quase de passagem,
uma frase aparentemente sem importância: “Todos pensaram que o encontro dos
jogadores de xadrez fora casual”. O leitor esperto entende que ali tem uma
pista. “E se”, pensa ele, “esses dois personagens tivessem mesmo se encontrado
propositalmente?...”. Volta ao começo do livro, e na releitura compreende a
verdadeira história, que conduz a uma solução diferente e que só ele, o leitor,
conhece. E Borges conclui: “O leitor desse livro singular é mais perspicaz que
o detetive.”
Parece forçado? Não é. Um escritor francês, Pierre
Bayard, “desconstruiu” dessa forma dois clássicos da literatura policial, O Assassinato de Roger Ackroyd (1926) de
Agatha Christie e O Cão dos Baskervilles
(1902) de Conan Doyle. Ele examina em detalhe ambos os livros e propõe duas
novas explicações, muito diferentes das soluções propostas pelos autores
originais. E que me pareceram muito bem argumentadas, sim senhor.
Comentei os dois aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/04/1917-quem-matou-roger-ackroyd-152009.html
https://mundofantasmo.blogspot.com/2016/09/4159-o-detetive-investigado-1592016.html
Quando uma história não fecha totalmente, ficamos
incomodados, mal-satisfeitos, queremos ler o livro de novo. É uma conta que
deixa resto, ou na qual fica faltando alguma coisa. Se o romance é todo
fechadinho, ele se esgota na primeira leitura. Se não, ele pode ser lido
indefinidamente, e aquele pedaço faltando nunca vai deixar de nos incomodar.
O mesmo vale também para os relatos de crimes
verdadeiros. Gosto de acompanhar (em livros ou na TV) relatos de investigações
policiais, mas prefiro aqueles mistérios que nunca foram solucionados, que
estão pendentes até hoje. O caso de Jack o Estripador, por exemplo. Há centenas
de livros e de filmes escritos a seu respeito, dezenas de teorias sobre a sua
identidade, as mais fantasiosas, as mais plausíveis. Nada disso existiria se o
criminoso tivesse sido desmascarado e preso.
A série Mistérios
Sem Solução, disponível no Netflix, tem alguns episódios que assisti meio
bocejando. São crimes não resolvidos, mas em alguns casos fiquei com uma idéia
muito clara de que o criminoso é aquele Fulano ali. A polícia simplesmente não
conseguiu reunir provas suficientes para indiciá-lo. Mas foi o cara. Sem
dúvida!
Os episódios mais interessantes, por outro lado, contam
histórias “que deixam resto”. Os casos são reconstituídas pela TV muito anos
depois. Uma pessoa sumiu para sempre, ou foi assassinada. A polícia e o
programa têm uma idéia razoável do motivo, de como o crime aconteceu, até mesmo
suspeitas de pessoas ou grupos de pessoas que teriam dado cabo daquele
indivíduo.
Mas... tem algum detalhe que nunca foi esclarecido, e às
vezes são detalhes bobos. “Tá, tá certo, o cara foi morto por tal razão, por
pessoas assim-e-assado. Mas por que
diabos este detalhe da história, totalmente inexplicável, aconteceu desse
jeito?”.
Isso já me levou a parar no meio de uma série com uma
dúzia de episódios e rever alguns que já vi, em vez de assistir um episódio
novo. Por que? Porque tem uma coisa que não bate. “O que será que aconteceu,
para que esse detalhe fosse assim?” Não tem explicação.
Podem ser detalhes bobos. Por exemplo: o episódio 1 da
série, “Mistério no Telhado”, envolve a morte de um rapaz comum, em Baltimore.
Técnico de informática, trabalhava para a empresa de um amigo, só que a empresa
parece altamente suspeita, metida com negócios escusos.
O rapaz desaparece, e dias depois é achado morto. Caiu,
ou foi jogado, do alto de um hotel. A questão é o local onde ele caiu. A queda
de seu corpo abriu um rombo claríssimo no teto de metal de um salão-de-reuniões
ou coisa parecida, no andar térreo. O buraco no teto está a cerca de 15 metros
de distância do prédio. Para ele cair ali, seria muito difícil mesmo que
tivesse se jogado voluntariamente, ou sido morto no alto e jogado lá embaixo.
Por que o corpo foi jogado ali? Se alguém quis matá-lo, por que escolheu esse
modo tão mais complexo, mais arriscado, menos explicável?
Outro caso interessante é o episódio 8, “Morte em Oslo”.
Uma mulher chega num hotel 5 estrelas em Oslo, pede um quarto, fica dois ou três
dias hospedada sem chamar a atenção, e um dia aparece morta com um tiro, num
aparente suicídio. E algumas coisas “não batem”. Ela não tem documento algum
consigo, seus objetos e suas roupas não trazem nenhuma identificação, e a
gerência não sabe como ela fez check-in no hotel sem deixar documentos. (O nome
e o endereço que deu, na Bélgica, eram falsos.)
Vários detalhes no crime (que pode ter sido crime
político, de espionagem) não batem, mas um deles é especialmente intrigante. A
bagagem da mulher tinha várias peças de roupa, das quais foram cuidadosamente
tiradas algumas etiquetas que poderiam servir de pista sobre sua origem. E
entre as roupas não há uma única saia, uma única calça comprida. Todas as peças
inferiores desapareceram. Para não dar pistas? Bastaria tirar as etiquetas,
como se fez com as outras. Por que sumir com essas roupas?! É uma conta que não
fecha.
Um terceiro episódio, este ainda mais bizarro, é o
episódio 5, “O OVNI de Berkshire”. É a história, um tanto convencional, de um
OVNI que sobrevoou essa cidadezinha durante algum tempo, tendo sido visto em
vários pontos por pessoas diferentes – entrevistadas hoje, décadas depois, e
ainda assustadas com o que viram.
O avistamento tem os ingredientes habituais: luzes fortes
no céu, deslocando-se com rapidez, uma vibração estranha, ruídos estranhos,
etc.
A conta que não fecha é o depoimento de uma mulher, que
vinha dirigindo o carro com sua mãe idosa ao lado e uma criança no banco de
trás. Ao chegarem a cerca altura (era
cedo da noite) elas avistaram o OVNI, assustaram-se com as luzes. O carro
“morreu”. Elas perderam os sentidos. Quando acordaram, estavam ainda no carro –
mas em outro local, centenas de metros adiante de onde tinham desmaiado. E ao
invés dela estar ao volante, quem estava era sua mãe – e ela no banco do
carona.
– Tudo bem – diz ela, – os alienígenas podem ter descido,
removido nosso carro para outro local enquanto estávamos desmaiadas. Mas por
que trocaram nossas posições? Minha mãe não sabe dirigir. De que modo ela teria
ido parar atrás do volante?
Para mim, esses pequenos detalhes inexplicáveis têm muito
mais encanto do que barbaridades sanguinolentas ou lances espetaculares. É o
indício que não se encaixa, o fato que precisa ser explicado por qualquer
teoria que se pretenda definitiva.
São incógnitas desse tipo que fazem séries policiais como
Twin Peaks durar eternamente. Não é
apenas o recurso ao fantástico, ao sobrenatural, às viagens entre planos
hiperdimensionais ou sei lá o que. Mesmo nos aspectos puramente policiais e
criminais, Twin Peaks tem esses
detalhes de estranheza, de improbabilidade, e deixam perplexa qualquer pessoa
que se proponha a dar uma hipótese que faça “fechar a conta”.
O grande mistério é o mistério onde a conta não fecha.