terça-feira, 12 de janeiro de 2021

4663) A macaca minha irmã (12.1.2021)



É impossível falar sobre este livro sem dar um spoiler, sem revelar um detalhe essencial da trama. Um detalhe que surge de surpresa, a certa altura.
 
Me consolo ao verificar que a revelação inesperada aparece na página 77, de um total de 308, portanto não estamos falando da revelação do clímax do livro. Ademais, no livro há mistérios, há perguntas não respondidas, mas estão dispostas como camadas numa cebola. O livro termina com muitos enigmas solucionados, e outros que ficarão por resolver.
 
O livro, de Karen Joy Fowler, é We Are All Completely Beside Ourselves (2013), que eu traduziria por “Nós Estamos Que Não Cabemos Em Nós Mesmas”. Saiu em 2018 pela Rocco, com o título Estamos Todos Completamente Transtornados (trad. Geni Hirata).
 
É a narrativa de Rosemary, uma estudante universitária, filha de professores universitários, que de vez em quando se mete numas pequenas confusões, e que luta para entender fatos misteriosos ocorridos na sua infância.
 
Há um prólogo onde ela confessa que quando pequena falava pelos cotovelos, a ponto de seu pai sempre lhe pedir que começasse a contar as histórias pelo meio, senão não terminava nunca. E o Capítulo 1 começa assim:
 
Então: o meio da minha história acontece no verão de 1996. Nessa época, nossa família já havia minguado até atingir o formato sugerido em nossos velhos filmezinhos com câmeras domésticas: eu, minha mãe, e, fora da imagem mas evidentemente presente, meu pai. Em 1996, haviam se passado dez anos desde que eu vira meu irmão pela última vez, e dezessete desde que minha irmã desapareceu.
(pag. 5, trad. BT)
 
Conheço algumas famílias de onde um dos filhos desapareceu, e sei que não é um assunto fácil para ninguém. Alguns sumiram na época da repressão militar, nos anos da ditadura: eram militantes, eram visados... Outros sumiram de repente e sem motivo. Foram fazer uma viagenzinha de fim de semana e nunca mais se soube deles. Polícias e autoridades foram mobilizadas; em vão.
 
Rosemary vai contando seus percalços no momento presente mas volta e meia está falando da família e de como seu irmão Lowell simplesmente foi embora de casa. E muito antes disso, um trauma ainda maior: aos 7 anos, ela foi mandada para a casa dos avós, e depois de umas semanas, ao voltar para casa, descobriu que agora estavam morando numa casa completamente diferente. E que sua irmã, Fern, tinha desaparecido... e ninguém da família lhe explicava por quê.
 
A narrativa parece estar indo numa direção, e nos preocupamos com essa família meio “disfuncional” (no sentido de que todos se sentem desconfortáveis na companhia uns dos outros), onde o pai é psicólogo. É um professor, um intelectual, mas é incapaz de responder uma pergunta clara, e na verdade parece nunca sequer ouvir o que estão lhe perguntando.
 
E é a certa altura que Rosemary faz a revelação que terei de repetir agora, correndo o risco de espoliar o prazer da leitura de alguns. Fern, a irmã, é uma chimpanzé da mesma idade que Rosemary. O pai da garota criou as duas, que são da mesma idade, juntas, como se fossem irmãs, com o objetivo de analisar as influências recíprocas, e ver até que ponto a irmã chimpanzé influía no desenvolvimento da menina, e a irmã menina influía no desenvolvimento da chimpanzé.
 
São muitas as peripécias, as idas e vindas, porque Rosemary não apenas é considerada excêntrica (e sempre foi) devido a certos traços de comportamento, mas, à medida que fica adulta, mais capaz de entender o que lhe aconteceu, os pais ficam mais velhos, a mãe tem as depressões de sempre, e o irmão que botou o pé no mundo não dá nenhum sinal de vida. (E quando recebem notícias dele, seria melhor não ter recebido.)
 
Rosemary é uma narradora ao mesmo tempo inconfiável e confiável. Inconfiável porque a toda hora ela se dirige ao leitor dizendo algo tipo, “bem, acho que está na hora de revelar um detalhe importante, eu nem queria tocar no assunto mas...”. E confiável porque é sincera, e na verdade estamos acompanhando a sua jornada de auto-conhecimento, de descoberta autobiográfica. Ela compartilha essas descobertas conosco num tom narrativo ora descontraído, ora depressivo, ora irônico. Ela gosta de frases do tipo “acho que eu devia ter mencionado isto antes”.


Karen Joy Fowler é conhecida do grande público pelo grande sucesso que teve O Clube de Leitura Jane Austen (2004). Eu cheguei a ela por vias transversas. Fui seu aluno na Clarion Workshop em 1991, em Michigan, onde durante uma semana ela orientou a turma e criticou nossos contos. Quando alguns colegas me disseram que meu conto “Stuntmind” não tinha enredo, ela me disse que sim, e que o nome daquilo era “enredo revelatório” (“revelatory plot”) – o que me consolou bastante.
 
We Are All... tem também um enredo revelatório, pois embora aconteçam mil peripécias (bebedeiras, mortes, fugas, prisões, atentados terroristas) o cerne da história é a revelação gradual do passado da narradora. O que aconteceu com sua irmã Fern é, num certo sentido, de cortar o coração.
 
A sensação mais forte deixada nesse livro, contudo, é que com ou sem spoiler, com ou sem revelação bombástica, Rosemary considera Fern sua irmã real, da primeira à última página do livro. Foram criadas juntas, cresceram juntas, dividindo mil coisas. Há páginas e páginas com relatos de travessuras, de problemas, de brincadeiras, de birras, de exercícios, de compartilhamento de experiências, de momento em que duas “pessoas” sentem-se como se estivessem lendo o pensamento uma da outra, e isso cria entre elas um vínculo difícil de desmanchar futuramente.
 
Fern vive dentro da casa, sempre supervisionada pelo Professor e pelos alunos de graduação em Psicologia, que vêm a residência deles todos os dias, tomando notas sobre Rosemary e Fern. A garota cresce dentro disso. Ter pai cientista é normal. Ter estudantes dentro de casa é normal. Ter um irmão menino e uma irmã macaca é normal. Os laços de empatia que se criam entre ela e a irmã desencadeiam toda a transformação porque passa a vida de Rosemary (e de seu irmão Lowell, o sumido, que reaparece na segunda metade do livro).
 
O romance recebeu o Pen/Faulkner Award, foi finalista do Booker Prize e foi indicado para o Prêmio Nebula de Ficção Científica. Isto levanta a última questão que proponho aqui: é um livro de ficção científica? O livro conta uma experiência científica um tanto ousada (embora não imaginária: um apêndice comenta os vários casos semelhantes já ocorridos), e que produz consequências inesperadas na vida dos envolvidos. Questões científicas são discutidas várias vezes, a sério, no transcorrer da história.
 
Para mim, o que falta ao livro para que eu o considere FC (caso isto seja importante) é a ausência de elementos fantásticos e especulativos. É uma ficção realista sobre procedimentos científicos, e suas consequências sobre os humanos que deles participam; mas falta o estranho, o bizarro, o sobrenatural, o impossível. O livro vai até um limite, e não o transpõe. Deveria transpô-lo? Para mim, não: é um excelente livro do jeito que já é, e não sinto a menor necessidade de que alguém mexesse nele para poder chamá-lo de FC.
 
Não pertence ao gênero popular chamado “ficção científica”, mas é um excelente livro de ficção sobre a ciência.
 
O melhor livro que li de Karen Joy Fowler, inédito no Brasil, é Sarah Canary (1991), história ambientada por volta de 1860, no interior dos EUA, onde surge uma mulher misteriosa que não entende inglês e parece não saber falar, mas ao mesmo tempo uma intuição misteriosa a conduz numa jornada através da América. O crítico John Clute o considera “uma das melhores histórias de primeiro contato com alienígenas”. É uma história bastante próxima ao conto “Um Moço Muito Branco” (1962), de Guimarães Rosa.