Prefiro traduzir assim o título da minissérie The Queen’s Gambit, na Netflix. É a história de uma menina que descobre aos 9 anos ter uma capacidade fora-do-comum para o jogo de xadrez. Introvertida, meio selvagem, criada num orfanato, ela é vítima de uma série de acasos benignos muito comuns nos romances de Charles Dickens, e possíveis da vida real. Torna-se uma supercampeã, mas paga o preço do doping, porque ao longo da carreira se vicia em bebida e drogas.
Não tenho é tabuleiro. Faz trinta anos que não jogo com
ninguém. Não sou bom jogador: tenho preguiça de planejar jogadas. Jogo improvisando,
como quem percorre um labirinto. Não entendo de aberturas, defesas, etc. Mesmo
quando pegava um livro e reproduzia uma partida clássica, só entendia uns 30%
daquilo. Não é meu formato de inteligência.
O xadrez era para mim como a Ciência e a Música Clássica.
Não entendo nada de música erudita, mas tão musicais quanto as sinfonias e as
sonatas eram aqueles nomes: Rimsky-Korsakoff, Prokofiev, Scarlatti, Rossini, Stravinsky,
Khachaturian... Era como estar ouvindo
falar em Heisenberg, Schrodinger, Gell-Mann, Bohr, Feynman, Freeman Dyson...
Do mesmo jeito existe até hoje para mim uma música
misteriosa, cheia de promessas de enigmas e prodígios, por trás dos nomes dos
grandes enxadristas, e com certo alívio (porque a idade avançada nos
insensibiliza) descobri durante a minissérie que ainda me arrepiava ouvindo os
nomes de Capablanca, Alekhine, Morphy, Philidor, Botvinnik...
Mesmo quando não entendemos certas “ciências exatas”,
somos capazes de perceber a nuvem, o casulo de “ciências humanas” que sempre as
envolve – e reagir a ele.
(Reshevsky, aos 8 anos)
Os enxadristas foram os nerds do século 19, aquela geração de pessoas cujo gráfico mental-emocional
é um horizonte liso, perturbado a certa altura por um pico descomunal numa área
específica. São mentes quase autistas, introvertidas, desatentas para com as
banalidades do mundo. Toda sua energia é para alimentar aqueles bilhões de
neurônios em forma de quadradinhos preto-e-branco.
Millôr Fernandes, o Escarninho, dizia que o jogo de
xadrez ajuda muito a desenvolver a capacidade de jogar xadrez. Tem razão, por
um lado. Mas podemos dizer o mesmo de mil coisas. Um detalhe comovente da série
é quando ficamos sabendo que a mãe adotiva de Beth Harmon (a ótima Marielle
Heller) tocava piano bastante bem, mas desanimou do instrumento devido a um
casamento pavoroso. Para que serve tocar piano? Para nada, talvez. E para tudo.
Ao ver o talento da filha no xadrez, ela decide investir naquilo. Para que
servem o xadrez, o piano? Para aproximar duas pessoas tão diferentes.
Gosto muito do modo como os jovens enxadristas conversam
na minissérie. Depois de meses sem se ver, eles se reencontram. “Ôi.” “Ôi, tudo bem?” “Tudo. Não entendi porque você não usou o
bispo naquela final com Fulano, há dois meses.”
“Usei o peão, para ele pensar que eu queria proteger o cavalo.” É assim que nerd conversa: não tem
preâmbulos, não tem “chat social”, perguntar pela família, comentar que está
calor... Nerd vai logo ao que interessa. É um alívio conversar com gente assim.
À medida que a série avança, vai se tornando mais
hollywoodianamente previsível, marchando na direção do Final Feliz, esta versão
moderna da tragédia grega, daquela força superior a que ninguém (no caso, os roteiristas) pode desobedecer.
A matemática cruel do jogo impõe uma disputa de poder
escancarada, uma disputa entre ataque e defesa, uma luta de destruição
recíproca. Todas as metáforas do xadrez são metáforas de guerra. The Queen’s Gambit é uma história típica
da Guerra Fria, e reflete a vivência do autor do romance original, Walter Tevis
(1928-1984). Pelos comentários que li, a
reconstituição dos ambientes dos torneios, bem como das partidas em si, é
impecável. Acredito.
A certa altura, Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster), o
campeão norte-americano que se torna um dos mentores de Beth, comenta sobre os
enxadristas russos: “Eles são bons porque jogam coletivamente. Todos treinam
juntos e corrigem os defeitos uns dos outros. Nas partidas adiadas, analisam
cada jogada, conjuntamente. Nós norte-americanos acreditamos no talento
individual, que ganha tudo sem a ajuda de ninguém”. Eles adotam o sistema
russo, e batem os russos. Nessa reflexão não me parece haver uma intenção de
comparar o individualismo capitalista e o socialismo soviético. (Claro que quem
quiser interpretar assim tem pano para as mangas.)
O importante, que se concretiza no capítulo final, é o
fato de que na URSS o xadrez fazia parte da cultura popular, e nos EUA não. Na
URSS o xadrez era jogado por centenas de velhinhos, na praça, ao ar livre, num
frio de zero grau. Os campeonatos eram transmitidos e comentados pelo rádio
como se fosse uma Copa do Mundo. Num ambiente assim, mais do que o nacionalismo
político o que se impõe (como tantas vezes ocorre na arte e no esporte) é o
amor ao talento. Depois de derrotar o campeão russo, Harmon é agarrada em
delírio pela multidão de russos. Por que? Porque eles sentem ali a presença do
talento, da Grande Arte.