A tradução de um texto literário se assemelha às vezes,
em alguns processos, à adaptação desse texto literário para o cinema (TV,
teatro, etc.).
Em ambos os casos, trata-se de pegar uma obra onde certos
efeitos são obtidos através do uso de certos “instrumentos” – no caso do texto
literário, através das imagens e das idéias produzidas em nossa mente durante a
leitura de palavras escritas.
E criar outra obra onde esses efeitos serão repetidos,
mas através do uso de instrumentos totalmente distintos – as imagens em
movimento.
Nunca vai haver consenso sobre a natureza desses efeitos,
porque cada adaptador escolhe o que lhe parece mais importante, mais belo, mais
relevante, mais impregnado do espírito da obra – e descarta o resto.
Estou dando uma olhada (10 ou 15 minutos por dia) em duas
adaptações do primeiro romance de Raymond Chandler para o cinema.
The Big Sleep (1946) foi dirigido
por Howard Hawks, escrito por William Faulkner, Leigh Brackett e Jules
Furthman, e teve Humphrey Bogart no papel do detetive Philip Marlowe.
The Big Sleep (1978) foi escrito e
dirigido por Michael Winner, e teve Robert Mitchum no papel de Marlowe.
Estes dois filmes são muito diferentes entre si, apesar
de baseados no mesmo livro e ambos considerados pela crítica como adaptações
razoavelmente fiéis. Cada uma delas comete um pequeno número de terríveis
heresias contra o livro, mas no geral procura manter-se pertinho dele.
O filme de Howard Hawks mudou completamente o final, criando
uma cilada, um tiroteio e uma morte que não estão no livro. Também diluiu
referências a drogas, a ninfomania e a nudez, devido ao Código Hays, um código
de censura aos filmes de Hollywood em sua época. Inventou também um romance
entre o detetive e uma das suspeitas, para faturar em cima do romance real
entre Bogart e Lauren Bacall.
O filme de Michael Winner segue muito mais de perto os
acontecimentos e os diálogos do livro, às vezes num grau irritante de detalhe. Mas
tem uma heresia básica, que deixou todo mundo de boca aberta: a ação não se
passa na Califórnia de 1940, e sim em Londres, na época da filmagem.
Nestes dois filmes, reencontramos uma famosa dicotomia
que existe na tradução literária: a fidelidade à letra e a fidelidade ao
espírito.
O filme de Hawks é considerado mais ou menos um clássico
do filme policial “noir” norte-americano. Mesmo sob censura, exprime o ambiente
de violência, corrupção moral e pequenos golpes dos romances de Chandler.
Histórias onde pessoas ricas e mimadas aprontam o que lhes dá na telha e
desencadeiam uma guerra entre trambiqueiros e criminosos para ver quem se
aproveita mais da sua fortuna. The Big
Sleep é basicamente sobre isto.
Transpor essa “ecologia moral” para a Londres de 1978
exigiria uma reescritura completa do argumento e dos personagens, e
curiosamente Michael Winner optou pelo contrário: a fidelidade ao-pé-da-letra
ao argumento original.
Muita gente pensa que transpor um livro para o cinema é
uma façanha gigantesca mas simples, como a daqueles engenheiros chineses
capazes de pegar um prédio de 10 andares, despregá-lo do chão e movê-lo
horizontalmente a 500 metros de distância, para que no local anterior possa
passar uma rodovia, e o prédio ser preservado.
Foi isso que Michael Winner tentou fazer, mas uma
situação dramática da Califórnia nos anos 1940 não pode ser transplantada
automaticamente para a Londres dos anos 1970.
O ator que faz Philip Marlowe no filme de Winner é o meu
preferido: Robert Mitchum, grandalhão, pesado, irônico, com cara de quem é
capaz de aguentar dez assaltos apanhando de Evander Hollyfield e depois chamá-lo
para tomar um drinque. O problema é que o Marlowe dos livros é um homem na faixa dos
40 anos, e Mitchum aparenta os 60 que tinha na filmagem.
Bogart, por causa do filme de 1946, acabou se tornando o
que o pessoal chama hoje “o Marlowe icônico”, mesmo sendo baixinho (nas cenas
com Lauren Bacall tinha que usar sapatos especiais para ficar mais alto do que
ela). Uma das características físicas de Marlowe é ser grandão, aguentar muita
porrada (nos livros, ele apanha mais do que bate). Bogart tinha 1,73m, e só
convence porque é ótimo ator e tem o viés de sarcasmo do personagem.
Como se vê, em cada “tradução” perde-se num detalhe e
ganha-se em outro.
Uma lebre interssante foi levantada por William Luhr no
livro Raymond Chandler & Film (Tallahassee:
Florida State University Press, 1991). Um dos principais elementos de plot é
que a livraria de livros raros de Geiger, a primeira vítima, lhe serve como
camuflagem para a venda e o aluguel de livros pornográficos. No livro, há uma
longa sequência em que Marlowe segue a pé um cliente que, apavorado, acaba
jogando nuns arbustos o pacote comprometedor e fugindo na carreira.
No filme de 1946, tudo isso é botado para escanteio, por
causa da censura. No filme de 1978, como não tinha censura, Michael Winner
mostra a cena, mostra o livro, mostra as fotos. E Luhr argumenta:
O problema aparece porque Winner ambienta seu filme em Londres nos anos
1970, não em Los Angeles dos 1930. Na década de 1930, [quando transcorre a
ação do livro] a pornografia explícita
era algo que se vendia por baixo do pano. Na Londres dos 1970, entretanto,
alguém precisaria apenas caminhar para Leicester Square e comprar abertamente
um material que faria Mae West enrubescer. As atitudes culturais com relação e
nudez e sexo mudaram; hoje em dia ninguém se surpreende em ver um exemplar da Playboy
na mesa de um banqueiro. (...) Consequentemente, a reação de Marlowe ao livro,
e a o caráter furtivo da loja de Geiger (...) parecem ridículos.
(pág. 183, trad. BT)
Winner, que se gaba de ter seguido fielmente o livro,
esquece que depois de uma grande infidelidade (mudar a época e a cidade)
qualquer minúcia ou é desnecessária ou contraditória.
Existem atitudes de época, emoções de época, reações de
época, vocabulário de época. Se um adaptador transporta isso para uma época diferente,
vai ter que recalcular tudo.