Numa resenha de um livro na revista Locus, Gary K. Wolfe chama a atenção para essa mania de Neal
Stephenson (autor que eu muito admiro, aliás):
Na reta final do thriller Reamde, a jovem geóloga que é um dos
personagens centrais está fugindo desesperadamente de terroristas islâmicos
numa floresta do Canadá quando se vê escalando a inclinação de um talude e faz
uma pausa para pensar sobre “o ângulo de repouso, que é a inclinação que um
determinado monte de material pulverizado adota naturalmente ao longo do tempo,
e que explica o formato externo de um formigueiro, de um monte de açúcar, uma
pilha de cascalho ou de seixos.” Não é o tipo de coisa em que eu estaria
pensando se estivesse sendo perseguido a tiros por terroristas, mas o fato é
que eu não sou um personagem de Neal Stephenson.
(“Locus”, # 608, setembro 2011, trad. BT)
Stephenson é, dentro da FC norte-americana, um dos
campeões indiscutíveis em entender e explicar como a tecnologia do mundo de hoje
funciona. Ele estuda e pratica compulsivamente todo tipo de gadget tecnológico que inclui nos seus
livros, e são muitos. Eu não diria que ele faz essas coisas “para se amostrar”.
Não: ele apenas é um cara que pensa assim, funciona assim, e quando escreve
reproduz em sua ficção seus processos espontâneos de pensamento.
Só li dois livros dele, ambos excelentes. Um é Snowcrash (1992), publicado no Brasil
pela Editora Aleph, com tradução de Fábio Fernandes, lançado numa edição com o
título de Nevasca e em outra com o
título original. O outro é The Diamond
Age (1995), um futuro de ultra-tecnologia onde os chineses reproduzem a Era
Vitoriana inglesa nos menores detalhes.
O problema com Stephenson é que poucos livros dele têm
menos de 900 páginas, e romances de 1.200 páginas não são nenhuma surpresa. É
como uma viagem de navio – é agradável, mas você sabe que é um projeto a longo
prazo.
(“Locus”, # 608, setembro 2011, trad. BT)
Em outro momento, o mesmo Gary K. Wolfe explica,
comentando outro romance de Stephenson (Anathem,
2008), sobre uma civilização de eruditos num planeta distante (uma espécie de O Nome da Rosa interplanetário):
Em seu aspecto mais ambicioso, ele nos convida para examinar por
inteiro o corpo principal da filosofia do Ocidente através do prisma de um
mundo inventado; e, embora exista nisso um indiscutível charme de estudante
universitário, ficamos pensando se uma parte do entusiástico público leitor de
Stephenson não se verá em breve atribuindo a ele a invenção de muitas das
idéias que ele recapitula em seu fabuloso “Syntopicon”.
(“Locus”, # 572, setembro 2008).
Diga-se desde logo que esses romances de mil páginas não
são feitos apenas de digressões enciclopédicas. Stephenson é um narrador
compulsivo de aventuras, mestre dos episódios de perseguição, fuga, invasão,
conflito, brigas de socos, guerras de exércitos; pode-se dizer que seus
romances são videogames de ação e aventura para intelectuais. Personagens com
quem a gente se identifica, diálogos espertos, sutilezas psicológicas...
Mas o problema continua de pé. É preciso mesmo explicar tantos detalhes assim?
A resposta tem que levar em conta que existem pessoas que
adoram essas explicações, e outras que não as suportam. Se eu tivesse mais
tempo e menos afazeres, leria com imenso prazer, por exemplo, o famoso “Ciclo
Barroco” dele, formado por Quicksilver
(2003, 944 páginas), The Confusion
(2004, 815 páginas) e The System of the
World (2004, 915 páginas).
(“Locus”, # 572, setembro 2008).
Mas a vida é curta. O que me aguarda na minha
estante, no momento, e de cenho franzido, é o premiado Cryptonomicon (1999, 1.140 páginas).
Lembro-me das aulas do mestre Damon Knight, quando ele
dizia às vezes: “Não precisa descrever a espaçonave. Todo mundo já sabe como é
uma espaçonave. Mostre somente o detalhe que vai ter importância na história”. É
um conselho útil, mas acontece que muitos escritores (e leitores) de FC são
engenheiros, sejam profissionais, estudantes, diletantes ou curiosos, e para
esses leitores é um pouco frustrante pegar um romance, saber que a espaçonave
está indo da Terra para Alfa do Centauro, e não receber um vintém de informação
sobre o meio de propulsão utilizado ali.
Outra coisa:
Não se trata apenas da ficção científica. Vamos dar uma
passada nos infodumps dos clássicos
brasileiros. Podemos começar com os tratados de geologia e botânica que
Euclides da Cunha inseriu em Os Sertões.
Ou então pensemos no Romance da Pedra do
Reino: basta alguém citar o nome de uma família sertaneja para Ariano
Suassuna pegar o leitor e dar uma volta inteira ao quarteirão explicando
genealogias e cavalgadas.
Autores regionalistas são usuários aplicados do infodump, porque grande parte do romance
regionalista está imbuído de uma missão de retratar, registrar, conservar usos
e costumes através da palavra escrita.
Daí que nossa ficção rural se dedique a longas digressões
sobre cuidados com o gado, sobre novenas e festas tradicionais, sobre o
trabalho do vaqueiro ou do agricultor, sobre batuques e festejos... Páginas e
páginas onde o autor oitocentista preservou o ambiente que conhecia – e eu,
pelo menos, sou agradecido por isto. O livro pode até não ser grande coisa como
romance. Ironicamente, é o infodump
etnográfico que hoje o torna precioso para nós.