No filme O enigma de Kaspar Hauser (1974) de Werner Herzog, há uma cena em que um professor de filosofia vai testar a inteligência de Kaspar, o rapaz que passou a infância inteira trancado num porão, ficou meio retardado, mas de vez em quando tem uns lampejos de sagacidade que desconcertam as pessoas.
A cena está aqui (com legendas):
https://tinyurl.com/y66679kq
Essa cena geralmente é comentada pelas pessoas como uma
“surra de sabedoria” de Kaspar em cima do professor. Claro. Todo mundo torce
por Kaspar. Ele é o “idiot savant”, o cara cheio de deficiências mas que tem
uma habilidade fenomenal, capaz de pegar desprevenido um adversário. É o time
pequeno enfrentando o time rico e poderoso. Todo mundo torce por ele.
Eu não vejo assim. Para mim a cena mostra a incompatibilidade
entre duas linguagens, dois sistemas de pensamento, nenhum dos quais
necessariamente superior ao outro.
A linguagem da Lógica, proposta pelo professor, é uma
linguagem altamente artificial, altamente formalizada, cheia de riquetriques e
de não-podes, que busca uma exatidão 100% nas perguntas e nas respostas. Tem
muito pouco a ver com a linguagem frouxa, maleável, imprecisa, contraditória,
reversível, fractal e subjetiva que usamos no dia-a-dia, aqui neste texto, por
exemplo.
A Civilização-como-a-conhecemos precisa das duas
linguagens, porque sabe que cobrem áreas diferentes do conhecimento.
A linguagem do professor depende, para funcionar, de uma
série de premissas. Que de um lado todo mundo minta. Que do outro lado todo
mundo só fale a verdade. Que a pessoa seja encontrada no meio do caminho, e não
na entrada do vilarejo (o que talvez indicasse a qual dos dois ela pertencia).
Que você (o aluno) só tem direito a uma pergunta. (Por que só uma? Quem
determinou?) Que seja uma pergunta (isso não tem no filme) que devia ser
respondida com “sim” ou “não”.
O problema de Lógica é um problema que sempre vai se
fechado numa escolha binária. A Lógica funciona em forma de fluxograma, uma
coisa ensinada em nossos cursos de Administração, com aqueles balõezinhos:
“Você sabe falar? SIM – NÃO”.
A Lógica procura estabelecer com certeza absoluta a
direção de um raciocínio consecutivo (onde cada afirmação é consequência de uma
que veio antes e causa de outra que deverá vir depois). E o raciocínio binário
(sim ou não, certo ou errado, verdadeiro ou falso) é essencial para isso.
O problema é que tudo isso vale para a Lógica, mas a
Lógica é um mero instrumento para nos ajudar quando nos deparamos com um
problema verbal intransponível. Na vida real, basta perguntar se o cara é uma
rã. A linguagem comum tem milhões de atalhos não-Lógicos mas tão eficientes
quanto, porque é um saber conectado a outros repertórios de idéias (p. ex., a
percepção visual, que distingue entre um ser humano e uma rã).
A cena torna-se cômica porque os professores de Lógica,
querendo reduzir a aridez e a abstração das fórmulas, tentam “humanizar” os
problemas. Fazemos isso na Matemática no 1º. Grau. Em vez de perguntar
“15-8=?”, dizemos: “Joãozinho tinha 15 chocolates; ele deu 8 chocolates para Maria;
com quantos chocolates ficou Joãozinho?...”
Humanizar problemas abstratos ajuda a trazê-los para a
zona-de-conforto de nossa experiência humana. Ajuda a raciocinar em termos que
já raciocinamos antes, com coisas que são importantes para nós, como a
quantidade de chocolates que temos no bolso.
No entanto, trazer para essa região mental implica em
contaminar um problema puramente aritmético com emoções psicológicas. O aluno
levanta o braço e diz: “Mas por que motivo Joãozinho é obrigado a dar tantos chocolates
para Maria? O que foi que Maria fez para ficar com quase a metade dos
chocolates dele?...”
É bobagem? Não, não é. O problema, que era apenas
aritmético, foi contaminado por fatores humanos e ficou de porta aberta para
esse tipo de questionamento.
Há um outro episódio que já vi algumas vezes nas redes
sociais, vou citar de memória. Num instituto tecnológico de Israel, o professor
coloca para seus alunos de Engenharia o seguinte prolema: “É preciso
transportar 50 mil litros de sangue, ou de plasma sangíneo, para uma cidade a 100
km de distância. Qual o meio mais rápido, mais barato e mais seguro de fazer
isso?”.
No outro dia, os alunos trazem soluções variadas:
caminhões frigoríficos, tubulações pressurizadas e refrigeradas, frota de
helicópteros, etc.
O professor diz: “Beleza. Mas não ocorreu a nenhum de
vocês querer saber para que vão servir esse 50 mil litros de sangue?” Todo
problema de engenharia, etc., costuma ter um lado humano e social que, aos
olhos dos engenheiros, preocupados apenas com exatidão, precisão, economia e
eficácia, passa completamente despercebido.
Esta é uma questão que diz respeito também à ficção
científica.
Muitos romances de ficção científica surgem de um
problema de Engenharia, Cosmologia, Astronáutica, Física, Química, etc., que
ocorre ao escritor. Ele tenta equacionar e resolver esse problema sob a forma
de uma história de ficção envolvendo Joãozinhos e Marias, para deixar o
problema mais palatável e mais divertido para os leitores.
Ocorre que, acontecendo assim, o problema começa a se
contaminar de elementos humanos, de reações humanas diante de tudo que
acontece, de conflitos, rivalidades, imprevistas atitudes humanas. A lógica
inflexível dos números, símbolos e operadores começa a ser erodida pela imprevisibilidade
dos humanos usados como exemplos.
Esta é uma questão essencial da ficção científica hard, aquela que procura usar da maneira
mais rigorosa possível os princípios do método científico, da lógica formal ou
do saber estabelecido de qualquer ramo específico da ciência.
Voltando ao filme de Herzog: o professor tem suas razões,
Kaspar tem as dele, o que está havendo ali é apenas um diálogo de surdos. O
filme claramente faz do professor uma figura pedante e ridícula, com seu saber
pomposo e empoeirado sendo derrotado pelo “pensamento selvagem” do herói. É um
problema formulado na linguagem X e respondido na linguagem Y. Nenhuma das duas
é invalidada por causa desse mal entendido.