“O resumo da ópera” é uma expressão coloquial muito
popular e que se usa a respeito de tudo, não tem nada a ver com o canto lírico.
Já teve até uma boate com esse nome no Rio de Janeiro. Alguém chega de viagem e
você diz: “Como é que foi lá na Paraíba? Me faz aí o resumo da ópera”.
Matutando a respeito, deduzi o seguinte. Muitas pessoas vão
para a ópera (ou iam) por se tratar de um hábito social, mas não tinham o menor
interesse ou familiaridade com aquilo. Eram como aqueles caras que vão à missa
porque a esposa é católica, e lá ficam o tempo inteiro pensando no futebol ou
no pôquer.
As pessoas iam à ópera e ficavam perdidonas durante duas
ou três horas. “Por que os homens estão todos vestidos de faraó?” perguntavam.
“Por que a mulher de roxo está chorando?”
“O rapaz de botas foi preso pelos lanceiros, gente, o que foi que ele
fez?” “Ele arrancou a orelha do outro com uma mordida!” E assim por diante.
Daí inventaram os famosos resumos, distribuídos à entrada
na forma de folders ou de caderninhos sofisticadamente impressos. “O Conde
d’Alfazema é um viúvo, poderoso e solitário, que jurou nunca mais se apaixonar.
Um dia...” A situação básica é descrita,
cheia de spoilers, e enquanto todo mundo se abana à espera do começo alguém
pode ler tudo aquilo, ficar com uma idéia básica da função de cada coro e de
cada dueto, e quando a cortina se abre seja o que Deus quiser.
Penso isto porque uma das coisas mais difíceis é resumir
uma história. Uma vez entrei num projeto de roteiro onde o edital pedia que a
gente mandasse uma frase capaz de condensar o filme, de forma inconfundível (eu
pensei logo em “O Filho Que Era a Mãe”) e depois pedia uma descrição, um resumo e
uma sinopse.
Já li em algum manual que quem faz um filme deve ser
capaz de contá-lo em uma linha, em um parágrafo, em uma lauda, em dez laudas e
em 120 laudas. Em princípio, concordo. Porque se for um filme profissional, de
grande produção, quem trabalha com divulgação vai precisar a toda hora informar
pessoas “de fora” do que trata o filme. Por questões de publicidade,
regulamentação, parcerias, patrocínios, etc. E dependendo da circunstância,
essa lauda, ou essas dez laudas, serão tudo que o co-financiador vai ler sobre
o filme (porque está lidando com dezenas deles ao mesmo tempo). O filme tem que estar todo ali, com
clareza.
O problema é que um filme é como o elefante da parábola
dos cegos. Cada cego o apalpa num ponto diferente (a tromba, as pernas, as
orelhas) e descreve o que está sentindo.
Digamos um filme relativamente simples e famoso como O Mágico de Oz. Digamos que chega às mãos de um possível co-produtor da Tailândia estes dois resumos:
A)
“Uma menina que mora na fazenda dos tios é conduzida para
um país fantástico onde faz três amigos, cada um numa busca pessoal, e os 3 se
juntam para protegê-la. Eles se envolvem em aventuras, passam por perigos e no
final os amigos conseguem o que queriam, e a menina volta para casa.”
B)
“No interior do Kansas, visto em preto-e-branco, a menina
Dorothy sonha com o arco-íris, até ser arrebatada por um tufão e cair no
maravilhoso e colorido País de Oz, onde uma série de números musicais pontua
seu duelo com uma Bruxa Malvada e sua busca da Cidade de Esmeralda onde vive o
Mágico capaz de mandá-la de volta para casa – o que acontece finalmente.”
O produtor fica entusiasmado. “Vamos produzir ambos os
filmes! Queremos variedade!”
São duas descrições bem diferentes, cada uma delas
enfatizando outros elementos. Cada uma informa detalhes que não são referidos na
outra. Qual das duas está certa, qual está errada? Em princípio, nenhuma está
errada. Mas eu diria que a primeira, que fala em valores pessoais e
psicológicos, seria um bom resumo para enviar à Liga da Decência ou órgão
semelhante, que está interessada na mensagem humanista e moral da história. A
outra, que enfatiza os aspectos “cor/P&B” e “números musicais”, poderia ir
para a mesa do dono de uma cadeia de salas de exibição.
Sempre é possível resumir um filme, em poucas linhas, de
maneira a qualquer pessoa poder reconhecê-lo sem ver o título.
Sempre é possível resumir um filme, em poucas linhas, de
maneira a dar uma noção completamente errada a seu respeito, e sem mentir.
Tudo consiste em saber selecionar, saber escolher o que
dizer. É um pouco como a arte da caricatura. Nada é mais diferente de um
retrato (=uma fotografia) do que uma caricatura, com suas deformações bizarras,
seus exageros, suas tortuosidades, suas lacunas...
O que faz o caricaturista? Ele percebe, porque treinou
seu olho para isto, quais são os elementos mais característicos, mais
inconfundíveis daquele rosto, e os reproduz, exagerando-os de tal modo que é só
bater o olho e a gente diz quem é.
Como nesta série do paraibano William Medeiros:
Há uma brincadeira interessante proposta por Umberto Eco
em seu livro Diário Mínimo (Record, 1994,
trad. Sérgio Flaksman). Umberto Eco é um intelectual que admiro muito porque
ele tem bom-humor, gosta de abobrinhas, de trocadilhos, de ludismo verbal
gratuito. Admiro os intelectuais sérios, mas me sinto mais à vontade com os que
gostam de curtir irrelevâncias, tretas, memes, apelidos...
Naquele livro, que reúne muitas de suas publicações informais na imprensa italiana, Eco propõe a seguinte brincadeira:
O LIVRO MASCARADO
O jogo, que me foi proposto por Omar Calabrese, consiste em extrair de
uma obra famosa sua trama essencial, e narrá-la de maneira correta, mas criando
algumas dificuldades de identificação de modo a fazer supor que se trate de
outra obra. O título deve ser enganador e distanciar o leitor da solução. (p.
263 e seguintes)
Aqui vão alguns exemplos propostos por Eco. Para não dar
spoiler, indico a resposta através de um link, para quem quiser conferir.
Pode me chamar de Ishmael
Nascido numa aldeia de carpinteiros, mestres na construção de lenhos
velozes, brandindo uma vara aguçada segue pelos mares, entre monstros e
portentos, seguindo o Leviatã. Sob o véu de muitas aventuras, a idéia é a de um
rito-de-passagem à idade adulta, a conquista da plena condição humana. Post
fata resurgo.
(Resposta: https://tinyurl.com/y524c3vn)
Meu caro Watson
Solteirão inveterado, com uma mania de exatidão que quase leva seu
inseparável assistente à loucura, embarca numa aventura bizarra, praticamente
uma insensatez. Quase por acaso encontra uma mulher, mas sabendo queé uma perda
de tempo. Atrapalhado, acaba voltando antes do que era previsto.
(Resposta: https://tinyurl.com/y4szofe9)
Um eremita arrependido
Longe do convívio humano, bate no peito, reencontrando uma
incontaminada proximidade da Origem, que deu vida a Adão e a seus filhos. Mas
não poderá subtrair-se às seduções da civilização. No fundo, estava levando uma
vida bestial.
(Resposta: https://tinyurl.com/y25s6hnv)
E assim por diante. Essas brincadeiras de Eco nos mostram
justamente como não resumir uma
história, porque estamos resumindo “X” e induzindo o leitor a pensar em tudo
menos naquilo.
Outra coisa: como falei acima, uma sinopse ou resumo
dirigida ao público é diferente da sinopse ou resumo que circulou entre a
equipe, os produtores, os patrocinadores. Se você faz uma sinopse de Psicose de Hitchcock para um possível
produtor, tem que avisar logo o “gancho” do filme, o aspecto mais sensacional
dele – que por motivos óbvios não poderá ser revelado ao público.
Todo filme (livro, etc.) tem alguns aspectos cruciais que
precisam ser mencionados num resumo cuja
finalidade é explicar do que trata o filme. Se você resume Bugsy Malone de Alan Parker, não adianta
explicar que é um musical de gangsters: se não disse que todo o filme será
interpretado por crianças, perdeu o mais importante.
Se você resumir A
Arca Russa (2002) de Aleksander Sokurov ou Ainda Orangotangos (2008) de Gustavo Spolidoro sem dizer que o
filme é feito numa tomada aparentemente única, ele vira um filme banal. É esse
o “grande detalhe” que (sem falar em outros méritos) torna o filme diferente de
todos os outros.