UM
Meu primeiro encontro com o homem que destruiu
minha vida foi num restaurante do Rio de Janeiro. Eu estava de saída, numa
noite de quinta-feira, e parei junto a uma mesa onde reconheci o Dr. Túlio
Andrade, que no ano anterior tinha defendido minha empresa numa causa cível
qualquer. Cumprimentamo-nos e ele me apresentou os dois amigos que jantavam com
ele. Um deles não lembro mais; o segundo era um homem magro, enrugado, de olhar
inexpressivo, que apertou minha mão com aparente má vontade. Era Sálvio Revoredo,
e quinze dias depois a polícia me acusaria de ser a pessoa que cortou sua
garganta e o fez sangrar até morrer num terreno baldio de Nova Iguaçu.
DOIS
O detetive fez um sinal de silêncio para a
cliente, levantou-se, abriu a janela deixando entrar os ruídos da rua, ligou o
rádio num rock estridente e voltou à escrivaninha.
– Antes de qualquer declaração, deixe-me avisar:
não me diga nada que possa comprometê-la. Fale como se houvesse um júri e um
juiz aqui conosco.
A mulher ergueu os olhos para o teto, os
ângulos da parede. Apertou a bolsa elegante com mãos trêmulas.
– Acha que pode haver microfones?... –
disse.
– Nunca se sabe. Não afirme nada. Fale
sempre no condicional. Então, pelo que entendi, se esse senhor tivesse mesmo
sido assassinado... Teriam sido então seis tiros?
– Sim – disse ela, com mais segurança. –
Teriam sido seis, e seriam poucos.
TRÊS
Eram precisamente
06:51 da manhã quando Brenton, o mordomo de Stokely House, entrou na biblioteca
para recolher, como fazia todas as manhãs, a bandeja que Sir Godfrey costumava
ter à mão durante a noite para beber um pouco de uísque e mordiscar alguns
frios enquanto escrevia. Ele foi até a mesa próxima à escrivaninha, varreu
cuidadosamente com a mão alguns farelos esparsos e os colocou dentro do copo
onde via-se um restinho de líquido cor de âmbar. Ergueu a bandeja e já se
encaminhava para a porta quando viu, do lado oposto do grande sofá, duas pernas
estendidas no tapete e dois pés calçando as pantufas de Sir Godfrey. Deteve-se,
estupefato. Hesitou um pouco, e decidiu levar primeiro a bandeja para a
cozinha, antes de verificar o que acontecera.
QUATRO
No ano 655 da era Ch’an, pouco antes da
terceira lua cheia, a brisa que soprava perto das margens do Yun Chih veio
naquela noite carregada de gritos, choros, imprecações. As lanternas amarelas e
vermelhas que clareavam o Pavilhão da Melodia Sem Fim mostraram a partida
súbita do senhor daquelas terras, o nobre Wang Su, que abotoava às pressas sua
túnica militar, enxugava as mãos e o rosto numa toalha que jogou sobre os
arbustos, tinta de sangue, e deu ordem ao cocheiro para que fosse embora dali.
Lá dentro, no claustro das concubinas, nove
delas ajoelhavam-se aos prantos em torno do corpo inerte da décima, que tinha o
rosto desfigurado de pancadas e um punhal cravado na garganta. Não era a
primeira vez que o brutal suserano praticava tais violências, que mantinham todas
elas com o peito opresso e a alma em terror. Mas nessa noite Ling Su Li pousou
sobre o peito ainda morno da amiga uma mão fervorosa, e murmurou em voz baixa
algo que há anos trazia preso dentro de si. E a segunda pousou a mão sobre a
sua, e fez o mesmo, e depois a terceira, e a quarta – todas sacramentando o
fato de que daquela noite em diante tudo continuaria aparentemente igual ao que
sempre fora, aguardando o retorno costumeiro do tirano, mas que entre elas,
aquele local funesto passaria a se chamar o Pavilhão da Sussurrada Jura.
CINCO
Não existe roubo impossível, não existe
segurança inexpugnável. Era essa a palavra de ordem que pairava na mente de
três homens discretamente vestidos, que passavam de mão em mão um poderoso
binóculo, à janela do vigésimo-sexto andar de um hotel de Paris. Dali, num
ângulo de 45 graus, podiam ver o quarteirão inteiro, os tetos, os pátios
internos, e a última casa, de três andares, no final do Impasse Lenormand, a
casa onde havia um cofre, o cofre onde havia uma caixa, a caixa onde havia um
escrínio que seria de apenas um dos três. Ali foi confirmado o prazo de um mês,
ali foi selada a aposta, e despediram-se com apertos de mão respeitosos e sem
sorrisos.
SEIS
Ela cruzou a sala com passos lentos e sentou
numa poltrona diante da minha. Cruzou as pernas. Usava uma sandália rósea,
brilhante, e em volta do seu tornozelo cintilava uma correntinha de minúsculos
elos de ouro.
– O que é isto? – perguntei, segurando seu
tornozelo e passando a ponta dos dedos, de leve, pela corrente.
– Chama-se anklet – disse ela, acendendo um cigarro.
– Que coisa mais linda – disse eu,
acariciando mais.
– Cuidado – disse ela, dando uma baforada. –
Dá azar.
– Se dá azar, por que usa? – perguntei.
– Não é a quem usa – disse ela. – Dá azar a
quem pega.
SETE
Às 17:30 de uma quinta-feira de junho de
2006, o sr. José Benício Morais de Lima, 44 anos, solteiro, representante de
vendas, deixou o quarto-e-sala onde morava sozinho no Rio de Janeiro e pegou a
ponte-aérea para São Paulo, como fazia três ou quatro vezes por mês. Era um
homem magro, olhos azuis, lacônico, discreto, e viajava sempre com pouca
bagagem. Nunca conduzia armas de fogo. Estas ficavam guardadas embaixo de uma
tábua em seu apartamento.
Às 21:14 da mesma noite de quinta, o sr.
João Batista Medeiros Luna, 44 anos, casado, representante de vendas, chegou em sua casa em Vila Madalena, São
Paulo, onde ao abrir o portão do jardim foi recebido com um beijo por sua
esposa Lúcia Helena e com algazarra pelos filhinhos Laís e João Jr. Era um
homem magro, olhos azuis, lacônico, discreto, e viajava algumas vezes ao Rio
todo mês, para cumprir contratos.