(Cortázar, em Ouro Preto)
Dias atrás circulou aí pelas redes sociais uma foto de
Julio Cortázar em Ouro Preto, compartilhada por Romério Rômulo, grande poeta
daquela Arcádia barroca e penumbral. Alguns amigos se espantaram: “Ué!...
Cortázar já esteve em Ouro Preto?
Cortázar já esteve no Brasil?”
Pensei que isto era de conhecimento público, mas como
aconteceu na época sumeriana de 1973, é fácil de entender por que muita gente
não sabia ou não se lembrava.
Não sei se a coleção (preciosíssima) do Suplemento Literário Minas Gerais está
digitalizada e aberta a pesquisas. Caso esteja, sugiro aos interessados que
cascavilhem um pouco na coleção daquele ano e acabarão achando um número
especial dedicado à aventura mineira do enormíssimo cronópio platino. Há
inclusive numerosas fotos dele, acompanhado de sua então namorada Ugné
Karvelis (da Editora Gallimard), e de vários escritores mineiros.
Um livro muito útil, e simpático, para conhecer melhor as
idéias e o varejo biográfico de Cortázar é a coletânea epistolar Cartas a los Jonquières (Buenos Aires:
Aguilar, Altea,Taurus, Alfaguara, 2010) que reúne em 500+ páginas as cartas
dele para o casal Eduardo e María Jonquières, amigos da vida toda.
São cartas importantes porque ele se dirige a amigos
íntimos, que acompanharam sua evolução como escritor desde os primeiros livros.
Eduardo Jonquières era pintor e poeta, com vários livros publicados e uma
carreira sólida nas artes plásticas. Numa época em que as cartas serviam a
muita gente como uma espécie de diário momentâneo para organizar e fixar idéias
e opiniões, Cortázar discutia com o casal de amigos assuntos que talvez não
mencionasse numa entrevista pública.
A viagem ouropretana foi comentada por ele junto aos Jonquières
num bilhete (que no livro vem transcrito, e em fac-símile) enviado de Brasília,
sem data, num cartão ilustrado com reprodução de obras de arte de Arequipa
(Peru), publicado pelas Damas Rotárias (= do Rotary Clube).
Cher Maître. Espia só do que são capazes as Damas Rotárias (uma dama
rotando parece uma coisa feia, não é?). Aqui estou, em Brasília, enviando-te
com atraso este delicado testemunho da arte arequipenha. Certamente Arequipo é uma cidade maravilhosa,
que talvez tenhas conhecido em tuas missões huneskianas. E agora, depois de ter
sobrevivido ao aluvião equatoriano e peruano, vou conhecendo este Brasil (Ouro
Preto, Congonhas, Rio, São Paulo, Brasília) e amanhã estarei na Bahia com
Caetano Veloso e os demais cronópios da música. Aqui faz um calor do quinto
caralho mas Niemeyer, que grande figura! Ainda voltarei por São Paulo, onde os
poetas (milhares!) me levarão aos seus países concretistas, com Haroldo de
Campos e Décio Pignatari à frente. Tudo é uma imensa loucura, o Cusco, Otávalo
no Equador, as pessoas, a bebida, a amizade, as noites com estrelas enormes.
Acho que são conhecidos os laços de amizade distante do
escritor com os compositores baianos e com os concretistas de São Paulo, com
referências em entrevistas, artigos, etc.
É interessante o detalhe de que Cortázar passou por
Congonhas do Campo, uma peregrinação que tantos estrangeiros (sou testemunha) se
interessam em fazer e tantos brasileiros nem batem a pestana. Eu mesmo nunca
fui, apesar de ter morado em Minas; tenho a meu favor o fato de que foi num
tempo de pindaíba absoluta. Dez anos atrás, passei a alguns quilômetros de lá,
mas vinha na estrada em uma van cheia de gente, rumo a um
aeroporto, não havia como fazer um desvio nem de meia hora.
Cortázar era um grande apreciador das artes plásticas, da
pintura, da escultura, da arquitetura. Nas cartas aos Jonquières, os primeiros
anos de sua moradia em Paris são cheios de relatos de viagens pela Europa,
visitando não somente os grandes museus, mas também fazendo incursões naquelas
cidadezinhas medievais obscuras onde estão algumas jóias arquitetônicas e históricas.
Ele era daqueles viajantes que, num trajeto de trem entre duas grandes cidades,
são capazes de descer numa estação insignificante, pernoitar num hotelzinho
qualquer, e na manhã seguinte ir até a Capela Fulano de Tal (já devidamente
pesquisada e anotada) para ver um quadro raro de Cimabue ou de Fra Angelico, e
de tarde pegar o próximo trem e seguir viagem.
(Mural
de cartões postais, na casa de Cortázar)
Ele tinha esse temperamento metódico de planejar viagens
de enriquecimento cultural, com uma longa lista de coisas para ver.
Nesse aspecto, se parece muito com o brasileiro Osman
Lins, que em seu Marinheiro de Primeira
Viagem e outras obras registra o quanto se preparou, metodicamente, para
estudar a arte européia in loco
quando viajou para o “Velho Continente” por seis meses, no intervalo entre sua
saída do Recife e sua transferência definitiva para São Paulo.
Diz Osman Lins:
Esta minha temporada na Europa foi muito importante, porque eu a levei
muito a sério, estabeleci programas muito rígidos de visitas a museus,
concertos, de visitas a determinadas cidades, fui a Arezzo só para ver certos
murais de pedra.
(Evangelho na Taba, Summus, pág. 212)
É o mesmo espírito de Cortázar, que nas compridas cartas
aos Jonquières relata suas viagens e comenta um por um os museus e galerias que
visitou, compara quadros, anuncia missão cumprida quando finalmente se depara
com um conjunto escultórico ou um mural.
Por isso, Ouro Preto e Congonhas do Campo (e
provavelmente Brasília, pelo aspecto arquitetônico) foram lugares que ele
certamente insistiu em conhecer, mesmo que os baianos o quisessem arrastar para
o Rio Vermelho e os paulistanos para Perdizes.
Para não dizerem que sou eu que estou inventando essa
afinidade de espírito entre Osman Lins e Cortázar, aqui vai o testemunho dele
próprio, em outra correspondência aos Jonquières, datada de fevereiro de 1983:
(...) Me alegrou o fato de você gostar tanto de Avalovara,
porque ainda que não me lembre dele em detalhe, ficou-me como uma grande
experiência de leitura. Coisas como a imagem de “Cecília rodeada de leões”,
perduram em minha memória nos tempos de hoje. Às vezes penso que as coisas mais
fortes que li nos últimos dez anos são as obras de dois brasileiros, Clarice
Lispector e [Osman] Lins; dá quase vontade da gente se lançar ao português em
busca de outras coisas que por acaso possam existir.
A gente sabe que a barreira entre a língua castelhana e a
língua brasileira é uma barreira desigual. Nós os entendemos e os lemos com
relativa facilidade, enquanto que para eles a via contrária é muito penosa,
quase inacessível. Cortázar provavelmente leu Avalovara em francês, na tradução de Maryvonne Lapouge, pela
Denoël, de 1975.