Uma das bandeiras defendidas por Ariano Suassuna ao longo
de toda sua vida foi a da poesia popular, ou, como ele costumava chamar, o
Romanceiro Popular Nordestino. Ele achava esta expressão mais descritiva e mais
exata do que, por exemplo, “literatura de cordel”. Esta expressão que designa
os folhetos de feira, pendurados num cordel esticado horizontalmente, é um
termo que veio “de fora”, era usado pelos pesquisadores, não pelos que faziam e
vendiam os folhetos. (Sim, sei que isto é discutível; passemos adiante.)
Ariano chamava isso de Romanceiro Popular Nordestino
chamando a atenção, não para o formato gráfico dos livrinhos, mas para a forma
e o conteúdo dos versos. Os versos, afinal, são palavras, que podem ser
reproduzidas de mil maneiras. A Chegada
de Lampião no Inferno é literatura de cordel quando vem num folheto;
continua a sê-lo se for publicada e lida numa tela de computador? Num livro de
luxo, papel couché?
Romanceiro Popular Nordestino é uma expressão mais
inclusiva, porque puxa para dentro de si não apenas os folhetos de cordel mas
os romances recitados de memória, os poemas ibéricos que a memória nordestina
conserva há séculos, e talvez alguns deles nem sejam mais lembrados em
Portugal. Sobrevivem aqui, na voz das cantadeiras de antanho, como a
norte-riograndense Dona Militana.
No Romance da Pedra do Reino (1971), Ariano faz algumas divertidas classificações da poesia popular, através do narrador do livro, D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, e de outros poetas que com ele contracenam.
Um desses poetas é o famoso João Melchíades Ferreira da
Silva, o “Cantor da Borborema”, autor de uma das versões do Romance do Pavão Misterioso. (Uma
biografia de Melchíades foi deixada inédita pelo meu amigo Arievaldo Viana,
recentemente falecido em Fortaleza; espero que os editores se mobilizem para
que esse importante trabalho não se perca.)
Ver aqui:
Na página 58 da Pedra
do Reino (4a. edição), Quaderna, que foi discípulo do grande cantador, conta assim:
O velho João Melchíades ensinou-nos, ainda, que entre os romances
versados havia sete tipos principais: os romances de amor; os de safadeza e
putaria; os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo; os de esperteza,
estradeirices e quengadas; os jornaleiros; e os de profecia e assombração.
Classificações deste tipo são subjetivas, mas a vantagem
de Ariano é que nesse tipo de taxonomia literária ele sempre procurou a
simplicidade e a síntese. Numa publicação da Fundação Casa de Rui Barbosa (Antologia – Leandro Gomes de Barros 2,
Rio, 1977) ele sugere sua classificação “oficial”, por assim dizer (já que a
classificação acima é da dupla Melchíades/Quaderna):
1)
Ciclo
heroico, trágico e épico
2)
Ciclo
do fantástico e do maravilhoso
3)
Ciclo
religioso e de moralidades
4)
Ciclo
cômico, satírico e picaresco
5)
Ciclo
histórico e circunstancial
6)
Ciclo
de amor e de fidelidade
7)
Ciclo
erótico e obsceno
8)
Ciclo
político e social
9)
Ciclo
de pelejas e desafios
Para quem tem de lidar com um universo de milhares de
autores e dezenas de milhares de títulos essas classificações são úteis, desde
que o classificador lembre, o tempo todo, que praticamente qualquer folheto
pode ser igualmente classificado em mais de um ciclo. Um folheto sobre a morte
de Lampião, por exemplo, tanto pode ser visto pelo lado “circunstancial” (5)
quanto pelo lado “heroico, trágico e épico” (ciclo 1), e assim por diante.
É este aspecto, aliás, que faz o poeta Aderaldo Luciano
erguer um alerta contra o perigo do foco excessivo nos ciclos, como se um
folheto, obra literária personalíssima, fosse apenas ilustração de uma fórmula.
Antes de se enquadrar em qualquer das fórmulas acima, o folheto traz, por cima
do seu DNA coletivo, o DNA pessoal e intransferível do seu criador. Ninguém
confunde um folheto de Leandro com um de José Pacheco, nem um folheto de Marco
Haurélio com um de Rouxinol do Rinaré. As vozes são pessoais.
Voltando a Ariano, ele faz seus personagens principais
(Quaderna, Samuel e Clemente, os membros da “Academia de Letras dos Emparedados
do Sertão do Cariri”) se engalfinharem nas mais estéreis discussões terminológicas,
a respeito de miudezas dessa qualidade. Depois de ouvir a classificação
proposta por Melchíades, Quaderna já começa a desdobrá-la e recombiná-la:
Assim firmou-se em mim a importância definitiva da Poesia, única coisa
que, ao mesmo tempo, poderia me tornar Rei sem risco e exalçar minha existência
de Decifrador. Anexei às raízes do sangue aquela fundamental aquisição do
Castelo literário, e continuei a refletir e sonhar, errante pelo mundo dos
folhetos. Um dos tipos que eu mais apreciava eram os de safadeza, subdivididos
em dois grupos, os de putaria e os de quengadas e estradeirices. Dos primeiros,
o que mais me entusiasmava eram umas “décimas” do Cantador Leandro Gomes de
Barros, glosadas sobre o mote:
Qual será o beco estreito
que três não podem cruzar?
Só entra um, ficam dois,
ajudando a trabalhar! (Folheto XIV)
Com esses personagens simultaneamente acadêmicos e
picarescos, Ariano vai propondo classificações meio delirantes, e que talvez
por isso mesmo nos façam experimentar ali o peso das verdades provisórias da
literatura. Como quando Melchíades volta a dizer, explicando à trinca de
acadêmicos:
Existe o Poeta de loas e folhetos, e existe o Cantador de repente.
Existe o Poeta de estro, cavalgação e reinaço, que é o capaz de escrever os
romances de amor e putaria. Existe o Poeta de sangue, que escreve romances
cangaceiros e cavalarianos. Existe o Poeta de ciência, que escreve os romances
de exemplo. Existe o Poeta de pacto e estrada, que escreve os romances de
espertezas e quengadas. Existe o Poeta de memória, que escreve os romances
jornaleiros e passadistas. E finalmente, existe o Poeta de planeta, que escreve
os romances de visagens, profecias e assombrações. (Folheto XXXVI)
Pode parecer excessivo, mas nada é excessivo quando a
gente se depara com o hiperbolismo paraibano de Quaderna, sempre pronto a se
superar na próxima página:
Assim, sou o único escritor e Escrivão-brasileiro a ter integralmente
correndo em suas veias o sangue árabe, godo, negro, judeu, malgaxe, suevo,
berbere, fenício, latino, ibérico, cartaginês, troiano e cário-tapuia da Raça
do Brasil! (...) Depois de pronto e devidamente versado, o meu
será, portanto, o único Romance-acastelado, cangaceiro-estradício e
cavalariano-bandeiroso escrito por um Poeta ao mesmo tempo de pacto, de
memória, de estro, de sangue, de ciência e de planeta. (...) Por isso ninguém pode realmente contar a
história de Sinésio, ninguém sabe qual foi, mesmo, sua verdadeira direção e seu
verdadeiro destino, de modo que ninguém, exceto eu, pode contá-la, e ninguém,
portanto, exceto eu, pode vir a ser o verdadeiro Gênio da Raça do Brasil! (Folheto
LIX)
Modéstia à parte.