Meu hábito de falar sozinho não se deve a algum
transtorno esquizóide, tipo “Clube da Luta” onde o mesmo cara pergunta e
responde, pensando que é duas pessoas. É apenas o costume de quem escreve
letras de música ou textos para atores. A gente precisa sentir, fisicamente,
como uma frase é pronunciada pela boca e escutada pelos ouvidos, porque há nuances
que a palavra escrita-e-lida não cobre.
Isso às vezes dá a impressão de que há alguém por perto,
quando não há, e muitos contos policiais já foram criados usando, em algum
momento, essa pista falsa de que “vozes foram ouvidas por trás da porta
fechada”, o que seria indício da presença de duas pessoas no local – quando na
verdade só havia uma.
Qualquer pessoa sente um pequeno calafrio quando ouve
falar na possibilidade da presença de um ser invisível, alguém que uma pessoa
vê e outras não.
Na série de relatos radiofônicos Incrível, Fantástico, Extraordinário (publicado nos anos 1950), o
radialista Almirante descreve uma brincadeira de estudantes que tiveram a idéia
de pregar um susto às pessoas que saíam de uma missa, tarde da noite, e têm que
passar junto ao muro lateral do cemitério.
Os garotos levam lençóis, enrolam-se neles, e quando as
pessoas vêm passando eles sobem no muro e começam a andar compassadamente.
Digamos que eram dez. O da frente resolve olhar para trás para ver se nenhum
deles se acovardou na hora, e começa a contar: 1, 2, 3... E conta 11! Ele grita: “Tem um a mais!...” E há uma debandada geral.
Isso é folclore, no sentido de ser uma imagem ou situação
que aparece em diferentes culturas, diferentes registros.
(Pieter Bruegel)
Quem é o terceiro que sempre caminha ao teu lado?
Quando eu conto, há apenas você e eu, juntos,
mas quando olho à nossa frente na estrada branca
há sempre outro caminhando ao teu lado,
deslizando, envolto num manto marrom, encapuçado
e não sei se é homem, se é mulher
-- mas quem é esse aí do teu outro lado?
(trad. BT)
Em suas notas, no final do poema, Eliot explica:
Estas linhas foram despertadas pelo relato de um dos homens de uma das
expedições à Antártida (esqueço qual delas, mas acho que foi a de Shackleton):
ali foi relatado que o grupo de exploradores, já nos limites de sua
resistência, tinha a ilusão constante de que havia entre eles um membro a
mais do que eles eram capazes de contar.
Sem dúvida um delírio provocado pela fome, o cansaço, o
frio da Antártida.
Em notas a outra edição, Eliot lembra o episódio bíblico
em que os apóstolos sentem a presença invisível de Cristo ressuscitado, no
caminho para Emaús (Evangelho de Lucas,
24: 13-35): ele caminha ao lado de dois discípulos, que conversam com ele mas
não o reconhecem.
O episódio de Shackleton acabou, talvez, inspirando um
conto de Sir Arthur Quiller-Couch, “The Seventh Man” (1900), em que
um grupo de exploradores no Polo, semelhante ao de Shackleton, se refugia numa cabana rústica,
e um deles, em estado delirante, conta e reconta o grupo de seis... e todas as
vezes acha sete.
Seu olhar percorreu as silhuetas encurvadas. “Aí estão... Gaffer,
David Faed, Dan Cooney, Snipe, e... George Lashman em seu beliche, é
claro… e eu.” Mas então quem era o sétimo? Ele começou a contar. Aqui
estou eu; Lashman, no beliche; David Faed, Gaffer, Snipe, Dan Cooney… Um, dois,
três, quatro – mas isso quer dizer que são sete. Mas então, quem é o sétimo?
Será que George saiu do beliche e se agachou ali? Certamente há cinco vultos
agachados. Não: lá está George, posso ver perfeitamente, no beliche, e não pode
nem se mexer. Então quem é o estranho? Errado de novo: não há nenhum estranho.
Ele conhecia aqueles homens todos. Eram seus companheiros. Seria Bill? Não –
Bill estava morto e enterrado; nenhum daqueles era Bill, ou parecia Bill. Resolveu
tentar de novo. Um, dois, três, quatro, cinco. E nós dois, os doentes, sete.
Gaffer, David Faed, Dan Cooney – terei contado Dan duas vezes? Não, Dan está
ali, do lado direito, e é um apenas. Cinco homens agachados, e dois deitados de
costas; isso dá sete, toda vez. Meu Deus.
(trad. BT)
É uma história de terror tornada mais eficaz por esse
fluxo meio alucinatório da voz narrativa desse trecho, em que vemos as coisas
pelos olhos do personagem. Há em alguns
momentos uma leve impressão de conto edificante, como se o sétimo homem fosse
um anjo que veio protegê-los, ou fosse o companheiro morto, cujo espírito teria
voltado com essa mesma função.
O outro detalhe interessante do conto é que, apesar de
evocar o episódio de Shackleton, ele insere uma nova referência. Um dos
personagens na cabana está lendo um livro, The
Turkish Spy, onde é descrito um espetáculo de dança de palco, diante do
Rei, cuidadosamente ensaiado por doze dançarinos. A certa altura, a coreografia
começa a desandar, e um deles percebe que é porque agora há no palco um número
ímpar de pessoas fantasiadas (e mascaradas) dançando – são treze, agora.
Quando o número termina, correm todos, apavorados, para a
coxia, e fazem uma rápida contagem: são apenas os doze que estavam previstos.
Esse tipo de efeito é muito eficaz numa história de
terror, para sugerir a presença de um fantasma, muito mais do que os clichês
habituais da “alma de um falecido” que retorna ao mundo dos vivos para pedir
justiça, perdão ou vingança, ou para mostrar onde há um tesouro escondido. É
uma interferência direta no “sistema operacional” de nossa mente, que conta
treze pessoas onde só podia haver doze, etc.
Vejo um eco de tudo isto no mistério do filme O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed,
em que os relatos da morte de Harry Lime, atropelado à noite por um carro, numa
rua quase deserta, dizem que o corpo saiu dali carregado por três homens. Dois
deles são identificados; mas, quem era o terceiro?
Há um eco também no filme O Enigma do Outro Mundo (“The Thing”, 1982), de John Carpenter,
desta vez ambientado na Antártida, onde surge um alienígena capaz de matar
pessoas e absorver sua matéria, assumindo sua aparência. É um grupo de homens
paranóicos, cercados pelo gelo, morrendo de frio e de medo, porque sabem que o
“companheiro invisível” pode estar dentro de qualquer deles.
Pois é... É como dizia Augusto dos Anjos:
Andam monstros sombrios pela estrada
e pela estrada, entre estes monstros, ando!
(“Queixas Noturnas”)
(Augusto dos Anjos, por Flávio Tavares)
Daí que um dia eu saí de casa à noite, para uma reunião
de trabalho, no apartamento de alguém. Peguei o metrô, seriam umas 8 da noite,
e fui até o endereço que tinham me dado. No meio da rua, bem movimentada àquela
hora, tive a sensação de que havia alguém caminhando junto de mim, um pouco
atrás. Olhei por cima do ombro: ninguém. Continuei. A sensação voltou. Parei.
Deixei os outros transeuntes passarem, em ambas as direções. Retomei a
caminhada.
Subi sozinho no elevador, toquei na campainha. O dono da
casa abriu, sorriu ao me ver, olhou por cima do meu ombro.
– Está sozinho? – perguntou.
– Sim – disse eu. – Por que?
Ele riu:
– Não sei, tive a sensação de que tinha mais gente, antes
de abrir, acho que ouvi vozes.
– Eu não falei com ninguém – disse eu. – Posso entrar?...
– Claro – disse ele. – Entra aí.
Entramos.