(ilustração: Laurent Durieux / laurentdurieux.com)
Durante este período de quarentena coletiva muita gente
descobriu que tem janelas, que tem vizinhos, que tem curiosidade malsã pela
vida alheia.
Pior: que não lhe resta outro remédio senão ficar
voyeurizando o dia a dia de quem surge naquelas janelas, naqueles jardins,
naqueles terraços. Ficar brechando, como se diz em Campina Grande.
Alfred Hitchcock construiu o hino mais sofisticado ao
voyeurismo com o filme Janela Indiscreta (“Rear
Window”, 1954), em que James Stewart faz o fotógrafo novaiorquino L. B.
Jeffries, que, por estar com a perna quebrada no gesso, fica imobilizado à
janela, olhando o pátio dos fundos do seu prédio, que dá para os fundos dos
prédios vizinhos.
É verão, o que leva todo mundo a erguer as persianas e
escancarar as janelas – menos, é claro, o casalzinho de jovens recém-casados
que passa o dia de persiana abaixada, e quando o rapaz se debruça ali para
fumar um cigarrinho rápido é logo convocado de volta ao leito pela respectiva.
O pianista tentando compor uma música, sem conseguir... a
dançarina gostosinha cercada de admiradores... o casal que deita na varanda
para curtir um ventinho... a solteirona de coração solitário precisando de
companhia...
Jeffries está prestando atenção nos vizinhos
possivelmente pela primeira vez, porque é um daqueles fotógrafos internacionais
que passam meses fora de casa, cobrindo insurreições populares no Zimbábue ou
registrando safaris no Serengeti. Seis semanas com a perna no gesso o levam a
descobrir, nos fundos do seu prédio, um mundo igualmente fascinante e perigoso.
Um casal que vive às turras... certa madrugada ouve-se um
grito... pelo dia seguinte inteiro as persianas ficam abaixadas... a mulher não
é mais vista... vê-se o marido embrulhando facão, serra... saindo de madrugada,
embaixo de chuva torrencial, com uma mala metálica, voltando, saindo de novo...
que coisas, ou que partes de coisas, ele está levando naquela mala?
O DVD que revi agora tem um Making Of mostrando como aquele gigantesco cenário foi todo
construído de verdade, são varandas de verdade, salas de verdade. Para ter
altura suficiente foi preciso rebaixar o chão – o nível do solo é o apartamento
de Jeff, e o pátio embaixo foi construído no lugar onde havia um porão.
A história original de Cornell Woolrich é muito diferente
do filme. Foi publicada em 1942 no livro After
Dinner Story, onde o autor usou seu frequente pseudônimo de “William
Irish”. Começa assim (trad. minha):
Eu não sabia o nome de nenhum deles. Nunca ouvi suas vozes. Nem sequer
os conhecia de vista, propriamente, porque seus rostos eram pequenos demais
para que eu reconhecesse suas feições àquela distância. Mas eu poderia ter
construído uma tabela com o cronograma de suas idas e vindas, seus hábitos
cotidianos, suas atividades. Eles eram os moradores das janelas dos fundos que
me cercavam.
O conto, mesmo sendo de um dos meus autores preferidos,
nem de longe é tão bom quanto o filme. Primeiro, ele se concentra no crime, e
esses figurantes, no livro, somem depois da primeira página; foi o roteiro de
John Michael Hayes que deu
personalidade, história própria e cognomes a cada um deles.
Em segundo lugar, o cara do conto não tem enfermeira nem
namorada. Hitchcock trouxe o talento de Thelma Ritter (aquela típica
coadjuvante hitchcockiana a quem cabe ser o olho mais lúcido de toda a trama, e
ter as falas mais mordazes) e a presença mesmerizante de Grace Kelly, uma
dessas mulheres que se disserem “venha cá” o cara vai.
No conto há um diarista, Sam, que prepara comida para
Jeff e o substitui nas incursões externas que o filme transfere para Grace
Kelly; e há o detetive, mais ou menos na mesma função em ambos.
E um detalhe: no conto, vemos Jeff o tempo inteiro
sentado à janela, pedindo a Sam para ir ali, ir acolá, e não sabemos por que.
Somente no último parágrafo, à guisa de “final surpresa”, ele revela que está
com a perna no gesso. Essa surpresinha só serve para tornar a história
implausível durante 99% de sua extensão -- o leitor se pergunta o tempo todo por que o cara não sai dali. Deve ter sido a primeira
coisa que Hitchcock resolveu mudar, e revelar a perna-no-gesso desde o início.
Comentando para François Truffaut (em Le cinéma selon Hitchcock, 1966) a
multitude de pequenos dramas revelado pelas janelas traseiras dos apartamentos,
Hichcock diz:
Do outro lado daquele pátio há todo tipo de conduta humana, um pequeno
catálogo de comportamentos. Era absolutamente necessário fazê-lo, senão o filme
não teria interesse. O que se vê na parede do pátio é uma quantidade de
pequenas histórias, é o espelho, como você disse, de um pequeno mundo.
(Cap. 11, trad. BT)
Essa “quantidade de pequenas histórias” me traz à mente
uma outra obra que não tem nada a ver, e tem tudo, com o filme: o romance A Vida Modo de Usar (1987) de Georges
Perec (trad. Ivo Barroso). Nele, Perec parte da visualização de um edifício de dez andares com dez
apartamentos por andar, visto de frente e sem a parede que tapa a visão desse
observador externo.
A visão sugerida por Perec se assemelha a um tabuleiro de
xadrez posto em pé, com 10 x 10 casas. Cada casa é um apartamento, visto do
outro lado da rua (e sem parede atrapalhando). E o trabalho que o autor se
propõe (seguindo regras complicadas demais para comentar aqui) é contar a
história do que acontece nesse cem apartamentos – pois ele não é um mero
observador (como o de Janela Indiscreta):
é o Autor Onisciente, ele conhece aquele povo todo, sabe a história de todas as
suas familias, suas aventuras e desventuras, sabe o que pensam, o que guardam
em cada gaveta.
Perec não parece ser grande fã de Hitchcock. No romance, há
uma menção muito en passant ao
diretor no capítulo LXXV, e é ao filme Os
Pássaros. Não há menções a Hitchcock no Cahiers
des Charges de la Vie Mode d’Emploi (Paris : Zulma, 1993); e na
biografia de Perec por David Bellos aparece apenas uma menção rápida, meramente
biográfica, do dia em que Perec foi com uma namorada assistir Intriga Internacional (na França, La Mourt aux trousses).
Na adolescência (segundo Bellos), quando morava com seus
tios em Blévy, Perec era leitor assíduo da edição francesa do Alfred Hitchcock’s Mystery Magazine e do
Ellery Queen’s Mystery Magazine, além
das versões de revistas de ficção científica como Galaxy e The Magazine of
Fantasy and Science Fiction.
O autor francês cita algumas imagens que o inspiraram no
seu romance, mas não o vi falando de Hitchcock. Ele cita um desenho do mestre
Saul Steinberg:
Cita também a tradição das “casas de bonecas” dos
artesãos da Europa, obras variadíssimas que se encontram em muitos museus:
Em todo caso, para mim existe uma afinidade total de
espírito entre Janela Indiscreta e A Vida Modo de Usar: um cenário visto de
longe mas visto em sua totalidade, e o entrecruzamento dos dramas daquelas
pessoas que vivem lado a lado, que se conhecem, que se ignoram, que se
relacionam, que se esbarram ao acaso, e o fato de que provavelmente cada uma
delas se julga no centro de uma tela de cinema que é só sua.