Alguns anos atrás, ao traduzir para o selo Alfaguara o clássico de H. G. Wells A Máquina do Tempo, tive um susto a certa altura.
O livro é de 1895, e supõe-se em princípio que é mais ou
menos nessa época que o Viajante no Tempo inicia o seu trajeto rumo ao futuro,
onde chega primeiro ao ano 802.701 e depois faz uma breve incursão a um
remotíssimo futuro, onde tem o vislumbre, durante alguns minutos, da agonia do
nosso Sol e do nosso planeta.
Quando está ainda no primeiro trecho da viagem (cap. 6),
ele se mistura aos simpáticos Elois, a raça de rapazes e moças meio inocentes
que vivem na superfície, por entre as ruínas. A certa altura, descobre um poço vertical e
desce por ali, cheio de curiosidade. Vai parar no mundo subterrâneo dos
Morlocks, as criaturas monstruosas que movimentam máquinas incompreensíveis e
gigantescas. E o Viajante no Tempo comenta:
Desde então tenho pensado no quanto eu
estava mal-equipado para uma experiência como aquela. Quando parti na Máquina do Tempo, foi com a
noção absurda de que os homens do futuro estariam sem dúvida muito à nossa
frente em todos os aspectos práticos. Eu
viera sem armas, sem remédios, sem nada para fumar – houve momentos em que o
tabaco me fez uma falta angustiante – e até mesmo sem fósforos em quantidade
suficiente. Se pelo menos eu tivesse me
lembrado de trazer uma Kodak! Poderia ter registrado aquele vislumbre do Mundo
Inferior em um segundo, para depois examiná-lo com calma. Mas, do jeito que tudo ocorreu, vi-me ali
provido apenas das armas e dos poderes com que a Natureza me dotara: mãos, pés,
e dentes; e quatro palitos de fósforo, que eram tudo que me restava.
(The Time Machine, primeira edição, 1895)
Uma Kodak! Dei um
pulo diante de um anacronismo tão brutal. Certamente eu estava lendo uma versão
espúria do romance (não era; era uma edição da Penguin britânica; mas eu já
encontrei erros em edições assim). Felizmente havia uma nota explicativa
garantindo que as primeiras câmeras portáteis Kodak tinham sido introduzidas no
ano de 1890. A patente original norte-americana, de George Eastman, data de
1888.
Às vezes descobrimos uma menção a um detalhe que tem
datação nítida – como nesse caso, uma invenção tecnológica – mas talvez seja
uma das primeiras menções, quando aquilo ainda não se consagrara como um termo
comum da linguagem cotidiana. Quais serão, na literatura brasileira antiga, as
primeiras menções a “gilete”, “brahma”, e outras marcas que viraram
substantivos comuns?
Quando na canção “Desafinado” (de Tom Jobim e Newton
Mendonça) João Gilberto cantava “Fotografei
você na minha Rolley-Flex...” não faltou certamente quem visse nisso um merchandising subliminar, com algum
dinheiro escuso trocando de mãos por baixo do pano.
A Kodak, no tempo de H. G. Wells, já parecia ser algo
suficientemente popularizado para que ele não se desse o trabalho de explicar
que era uma máquina fotográfica. O nome e o contexto narrativo bastavam para
não deixar dúvidas.
E depois, fazendo uma consulta casual noutro clássico, me
vem este outro exemplo.
(Drácula, primeira edição, 1897)
É de 1897 a primeira publicação do Drácula de Bram Stoker, um clássico à altura do livro de Wells.
Como se sabe, grande parte do livro consiste nas anotações do diário de
Jonathan Harker, o bem intencionado agente imobiliário que sai de Londres para
os confins da Transilvânia a fim de negociar a compra de imóveis londrinos por
parte do conde.
Não indicarei página, porque as edições do livro são
legião; é logo no começo do livro, na data de 7 de maio, quando o diário de
Harker registra suas observações sobre a casa que encontrou, e que está
tentando vender ao Conde Drácula:
Em Purfleet, numa estrada vicinal, acabei encontrando um local como o
que procurava, e onde era visível uma placa muito estragada indicando que
estava à venda. Era cercado por um muro alto, de estrutura muito antiga,
construído com pesadas pedras, e há muitos anos não sofria reparos. Os portões
fechados eram de carvalho e ferro, carcomidos pela ferrugem.
O local chama-se Carfax, sem dúvida uma corruptela da antiga expressão
Quatre Faces, visto que a casa tem quatro fachadas, voltadas para os pontos
cardeais. Inclui ao todo uns vinte acres de terreno, bem protegidos pelo muro
de pedras que mencionei. Há muitas árvores, o que torna o local sinistro em
alguns pontos, e há uma pequena lagoa escura, profunda, evidentemente
alimentada por fontes subterrâneas, porque a água é limpa e flui numa
correnteza de bom tamanho. A casa é muito grande e data de diferentes períodos
do passado, eu diria que até os tempos medievais, porque uma parte dela é de
pedras, com paredes imensamente grossas e janelas muito altas, com pesadas
grades de ferro. Parece parte de um torreão, e fica próxima de uma antiga
capela ou igreja. Não consegui entrar, porque não estava de posse da chave da
porta que dá acesso a esta parte da casa; mas com a minha kodak tirei algumas
vistas de várias direções. A casa foi acrescentada a essa estrutura em época
posterior, mas de forma desorganizada, e posso apenas calcular por alto o terreno
que abarca, e que parece bastante extenso. Há poucas outras casas nas
redondezas, sendo uma delas um casarão de construção recente e que é usado como
um asilo privado para lunáticos. Ela não é visível do terreno, porém.
(trad. BT)
O romance é contemporâneo do de Wells, mas aqui a Kodak
também brota inesperadamente, só que em outro contexto: um contexto de passado,
de decadência, de mistério gótico, que afinal é o clima do romance: o mistério
gótico invadindo o coração do Império Britânico em seu apogeu. O termo “kodak”
se destaca ainda mais, por efeito de contraste.
Na última década do século 19, a Kodak já fazia parte do
vocabulário comum de escritores como H. G. Wells e Bram Stoker, a ponto deste
último usar a palavra com inicial minúscula. Ou pelo menos está assim na cópia em
PDF que baixei; na tradução que tenho (Tecnoprint, Edições de Ouro, 1960?,
trad. David Jardim Júnior) o parágrafo está bastante enxugado, e a palavra
“kodak” não aparece.
Procurando por aí ("Wikisource") achei novas menções da palavra em obras
de língua inglesa, como The Cruise of the
Snark (1911) de Jack London e Tante
(1912) de Anne Douglas Sedgwick.
Essa familiaridade se estendia até o Brasil.
Em Minha Formação
(1900), Joaquim Nabuco narra (no episódio “Massangana”, também já publicado de
forma independente):
Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas, se quero lembrar-me dele,
tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se
levantou diante de mim, verde e transparente como um banho de esmeralda, um dia
que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros,
me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra
líquida e movente... Foi essa onda, fixada na placa mais sensível do meu Kodak
infantil, que ficou sendo para mim o eterno cliché do mar.”
Este trecho é comentado por Flora Sussekind em Cinematógrafo das Letras (São Paulo:
Companhia das Letras, 1987) onde ela esmiúça de variados ângulos as respostas
literárias e paraliterárias dos escritores e intelectuais brasileiros diante nas
novas tecnologias que brotavam e que se expandiam à sua volta: a fotografia, o
cinema, o jornal ilustrado, o “reclame”, etc.
Nabuco (diz ela) recorre a imagens como “kodak” e
“clichê” quando tenta descrever os processos de fixação mental da sua memória
de criança. As novas tecnologias tornam-se novas metáforas do pensamento,
porque de imediato reconhecemos nelas esses processos de percepção,
enquadramento, registro, preservação, reprodução, acesso...
Não havia como não pensar numa Kodak ao se evocar o processo
indelével das memórias afetivas. O caso é que, como sempre acontece na
literatura, ninguém costumava se exprimir assim, mas quando um autor o faz pela
primeira vez (ou pelo menos a primeira vez no interior de um público
específico) o reconhecimento é instantâneo. A imagem já estava no subconsciente
coletivo. O artista a evoca. O público reage: “sim, é exatamente assim.”
A técnica nos supre novas metáforas, novas maneiras de
comparar processos que dominamos sem entender de todo, como é o caso da memória,
da imaginação, do raciocínio, das emoções.
Infelizmente não guardei a fonte desta citação de John R.
Searle, professor de filosofia, copiada de alguma revista, ou de algum saite da
web (talvez o excelente “A Word A Day”, de Anu Garg):
Por
não entendermos muito bem o modo como a mente humana funciona, somos tentados o
tempo inteiro a compará-la com o tipo mais recente de tecnologia. Na minha infância, sempre nos asseguravam que
a mente era uma espécie de central telefônica – o que mais poderia ser, afinal? Depois, descobri, divertido, que Sherrington,
o grande neuro-cientista britânico, comparava a mente a um sistema
telegráfico. Freud a comparava com
freqüência a sistemas hidráulicos e eletromagnéticos. Leibnitz a comparava a um moinho, e agora,
evidentemente, a metáfora é o computador digital.
Para Wells e para Bram Stoker a “Kodak” era um objeto
utilitário, comum, já fazendo parte do seu cotidiano; no texto de Joaquim
Nabuco, ela é metáfora da lembrança. Já está – eu diria – num grau ainda mais
profundo de integração à vida do escritor.