quarta-feira, 6 de maio de 2020

4577) Ser professor (6.5.2020)




(BT aluno)

Teve um professor meu de Geografia que sempre trazia um mapa-múndi enorme, enrolado. Pendurava num prego grande que tinha por cima do quadro-negro (era aquele quadro de pedra verde, embutido na parede) e usava uma varinha para indicar as coisas que explicava.

Eu sentava na primeira fila, porque a distribuição dos alunos nas “carteiras” (era o nome das bancadas individuais onde a gente sentava e escrevia) era por ordem alfabética. E vi que ele sabia tudo, ou já tinha acostumado, porque ele dizia, por exemplo, “Liverpool é um grande centro portuário”, e tocava com a varinha num ponto, quase sem olhar. Depois eu levantava e ia ver de perto, e era exatamente ali.

Uma vez ele estava falando das alterações do Homem sobre o meio ambiente, falou dos canais, explicou a diferença entre o Canal da Mancha, que é uma passagem natural, e o Canal de Suez, que foi construído por Ferdinand de Lesseps. Falou do Canal do Panamá.  Aí disse:

– Para que serve o Canal do Panamá? – Olhou em redor, olhou para mim, e tocou na minha carteira com a varinha. – Você.

Eu fazia a linha tímido-metido, não dava uma palavra nunca, mas me sentia na obrigação de, em falando, botar pra quebrar.

– Serve para ligar o Oceano Atlântico e o Oceano Pacífico, que são os dois principais – respondi.

– Correto – disse ele. – Do ponto de vista geográfico. Mas por cima do ponto de vista geográfico, o ser humano impõe o ponto de vista geo-político, ou geo-econômico. As necessidades reais das populações humanas. – Ergueu a varinha, e demonstrou. – O Canal do Panamá acabou servindo como a via marítima mais curta entre a Costa Leste dos Estados Unidos – indicou com a varinha – e a Costa Oeste dos Estados Unidos. – Fez a varinha descrever um arco de círculo.

– É o imperialismo norte-americano – falou um esperto, da turma lá do fundo.

– Sim e não – disse ele, imperturbável. – Se fosse a União Soviética, fazia a mesma coisa. É a necessidade de manter uma máquina imensa funcionando, porque eles têm 250 milhões de bocas querendo comer três vezes por dia. Por que foi que Vasco da Gama descobriu o caminho para as Índias, arrodeando a África? – A varinha foi até a Península Ibérica, e desceu o trajeto beirando a África inteira e subindo até a Índia. – Porque antes existia um caminho mais curto por Terra, que era esse aqui. – Aí mostrou mais ou menos o tal caminho que passava por Istambul ou Constantinopla, que a maioria dos meus colegas pensava que eram duas cidades diferentes. – Mas a guerra fechou esse caminho terrestre.  Eles tiveram que descobrir outro, que acabou sendo mais comprido, mas quebrou o galho. O Panamá foi o contrário. Ele pegaram a peixeira e abriram uma passagem.

– Por que logo com o pobre do Panamá? – perguntou alguém.

– O Panamá era o trecho mais estreito do continente – disse ele. – Eles podiam tentar abrir através do Amazonas, mas só iam terminar no ano 3.000.

Tive outra professora de Geografia, essa eu lembro o nome, era Dona Elaine, que eu já conhecia porque trabalhava com meu pai, foi uma época em que ele era funcionário da Federação das Indústrias. Ela não usava mapa, não usava varinhas, nada de efeitos especiais. Era uma coroa de cabelo colorido, toda enfeitada, cheia dos anéis, dos colares. Sentava, olhava a turma, cruzava os dedos das mãos e começava a contar uma história. Usava muitos conceitos de economia que na época (eu teria uns 15 ou 16 anos) eu achava chatos. (Aliás, acho até hoje.)

Foi ela que deu uma prova, certa vez, que nunca esqueci. Chegou no dia marcado para a prova, organizou a turma, “você vai sentar aqui, vocês três aí vão ficar espalhados, essa menina fica aqui na fileira da frente, você vai pra ali...”  E todo mundo caladinho, obedecendo. Livros guardados. Caneta e papel na carteira, prontos.

Ela sentou-se, cruzou os dedos, olhou para a turma por cima dos óculos, e disse:

– Quesito Único: “Fale sobre agricultura”. Podem começar. Têm quarenta e cinco minutos.

Eu me virei como pude; preferia que ela tivesse dito “fale sobre as possibilidades de colonização da Lua”, mas enfim.


(BT professor)

Dez anos depois, o professor era eu. Barbudo, cabeludo, de óculos, dava aula de Inglês e de Educação Artística, no Colégio Alfredo Dantas (onde também estudei, dos 9 aos 12 anos). Era um tempo cheio de matérias abstrusas. Tinha Estudos de Problemas Brasileiros, tinha OSPB (Organização Social e Política do Brasil)...

Enfim – eu dava aula de Educação Artística, o que era ótimo, porque o pessoal do Colégio dava carta branca e eu falava de cinema, de poesia... Os alunos (turma mista) tinham 17, 18 anos, por aí.

Me lembro de ter passado uma aula inteira dissecando aquele poema dos galos, de João Cabral, que eu dizia: “Hoje vamos ver um poema de João Cabral de Melo Neto dedicado à torcida do Treze”, e eles vibravam.

Uma vez eu terminei de dar a matéria daquele dia. Parei ali, de pé. Olhei em torno.

– Quantos minutos faltam? – perguntei.

– Cinco – disse alguém.

– Faltou assunto, professor?... – perguntou uma bonitinha, jogando uma ironia.

– Como assim, faltou assunto?! – disse eu. – Vou dar cinco minutos de aula extra, e o assunto são vocês que escolhem. Bora, escolham aí. Astronomia, Poesia Concreta, História do Império Bizantino, Cirurgia Cardíaca, Mineralogia...

Eles riam com as minhas tiradas. Aí alguém gritou: “Mineralogia!”.

– Mineralogia – anunciei.

Fiz um fictício, fechei os olhos, pus as pontas dos dedos na testa, concentrei, e eles fizeram um silêncio que nem eu esperava.

Abri os olhos, estendi um braço, teatral.

– Os minerais!... – falei, em tom meditativo. – O que sabemos nós dos minerais?!  Nada. Eles nada nos dizem, eles não se manifestam, eles nos ignoram... Não são como os animais, que interagem conosco, tem necessidades iguais às nossas. Não são como os vegetais, que como nós têm o ciclo da vida. Os minerais vivem noutra escala do tempo. O que para nós são 100 mil anos, para eles é um segundo. O que são eles, então?! Talvez sejam deuses adormecidos, esperando o momento em que evoluirão para estátuas, caminharão por fim nesse planeta que será só seu...

Eu tinha lembrado um livrinho de bolso, “O Falso Planeta”, de Peter Randa.  Saí por ali enrolando, citei Augusto dos Anjos, que mesmo fora do tema sempre impressiona, e fiz um fecho qualquer, bem dramático. Eles vibraram, alguns bateram uma palmazinha.

Aí o eterno e infalível Engraçadinho da Turma dos Fundos perguntou com voz desdenhosa:

– Cai na prova?...

Eu parei, estendi o braço na direção dele como se fosse um rifle, dedo esticado, e disse:

– A prova é a vida, rapaz!  A prova é a vida!

E nesse instante o Roteirista do Mundo me deu uma colher de chá, e a sineta ressoou.