(grafite no Recife, Seth + Derlon)
Se for feita uma enquete entre pessoas sudestinas a
respeito do modo de falar dos nordestinos, é quase certo que se concentraria no
vocabulário “exótico”, o vocabulário com termos que “só no Nordeste se usa”,
como oxente, arretado, gota serena,
etc.
Para mim, como escritor, tão importante quanto isto, para
caracterizar o Nordeste, são aquelas expressões comuns, com palavras comuns a
todo o Brasil, usadas de maneira peculiar.
Já me ocorreu muitas vezes, ao revisar um livro meu para
publicação, conversar com o(a) revisor(a) a respeito de certas frases;
geralmente nos diálogos.
– Essa frase está esquisita, ninguém fala assim – diz o(a)
revisor(a), que é carioca ou paulista.
– Lá em Campina Grande fala-se assim o tempo todo – digo
eu. – Estou registrando para a posteridade do idioma.
– Sim, mas isso é lá em Campina Grande. O livro vai ser
lido pelo leitor carioca (ou paulista).
– Ótimo. É uma boa chance para os leitores cariocas
(paulistas) aprenderem uma coisa que não sabem.
Sei que não é uma conspiração deliberada, mas cariocas e
paulistas fazem um esforço comovente no sentido de que se considere “universal”
tudo que eles fazem, e o resto seja considerado meramente exótico. Por que? São
conspiradores, são fumanchus, são ditadores orwellianos? Não, apenas isto: quem
tem poder econômico impõe seu alfabeto, seu dicionário, sua moeda, suas leis,
etc. É assim que a banda toca.
Conheço nordestinos que se fossem chefes de Estado
baixariam Medidas Provisórias obrigando todo mundo a usar o oxente, e considerando atentado à
segurança nacional o emprego do chiado carioca e do érre paulista.
Mas, vamos lá.
Na desgraça
Em nordestinense,
“na desgraça” não tem nada a ver com desgraças e catástrofes. Significa apenas:
“na pior das hipíteses.” “Já que a gente
não tem convite pra entrar na festa, vamos fazer o seguinte: a gente leva umas
bebidas, e na desgraça a gente fica bebendo do lado de fora.” “Se eu fosse o técnico, armava uma retranca
bem grande; na desgraça a gente voltava de lá com um empate.” A palavra desgraça entra aí como simples
hipérbole melodramática.
Na doida
Às cegas, sem plano, sem saber
direito o que está fazendo. De
maneira atabalhoada, sem planejamento, sem intenção clara. “Dei a
maior sorte: respondi a prova inteirinha na doida, e ainda tirei um
cinco.” “Parece que o guarda atirou na
doida, sem fazer pontaria, mas acabou acertando a perna dele.” “Eu logo vi que esse projeto não ia ser
aprovado, foi feito na doida, faltando uma semana pra fechar o prazo”.
Há uma brincadeira frequente: toda vez que alguém
diz que fêz alguma coisa “na doida”, pergunta-se: “E o doido, deixou?”
Esquecido
Inválido; sem movimentos. “Essa mulher é uma que mora em frente à
praça, ela é mãe de um menino que tem um braço esquecido” “O ladrão entrou na casa na hora que a
família foi pra missa, só tinha lá dentro o avô dela, que tem uma perna esquecida
e não pôde fazer nada”. Acho um uso muito poético da palavra: “esquecido”
no sentido de imóvel, sem ação, etc., como se a mente tivesse perdido o contato
com aquela parte do corpo.
Antigo
Tem às vezes a conotação de experiente,
vivido, esperto. “Ele veio com uma
conversa de levar o menino pra dar um passeio, mas o menino é antigo, deu um grito
e saiu correndo.” “Não adianta inventar
uma desculpa, mamãe é antiga, ela vai ver logo que tem coisa por trás.”
Pelas caridade
É meio que um equivalente a
“Por caridade!” – um pedido de súplica, de alguém que implora. Só que, nessa
grafia, e com uma pronúncia meio exagerada, é uma forma brincalhona de pedir
algo encarecidamente, mas de maneira descontraída. “Fulano, me mande esse texto hoje de noite, pelas caridade, porque eu
tenho ensaio às dez da manhã.” Note-se
que, como tantas vezes acontece na linguagem popular, o erro aparente é que dá
o poder expressivo. Se disser “pelas caridades”, estraga tudo. (Atenção,
revisão!)
Não tem xenhenhém
nem meu-pé-tá-doendo
Isso se dizia tanto na minha
casa que já não sei se pertence à linguagem de Campina Grande ou era o que a
gente chama de dialeto intramuros, coisas que só naquela casa são ditas e
entendidas. Tem o sentido aproximado de “não tem desculpa, não tem conversa, é
isso e acabou-se”. “Você vai arrumar essa
bagunça nesse quarto é hoje mesmo, não tem xenhenhém nem meu-pé-tá-doendo!...”
Chamando cachorro
caixa
Todo mundo sabe que quando um
indivíduo está muito bêbado a voz
fica pastosa, engrolada, ele não consegue pronunciar as palavras por completo.
Vem daí esta expressão para dizer que o cara estava muito bêbado, não era
apenas “puxando fogo”. “Foi uma briga
danada na volta, eu tive que tomar a chave do carro dele e eu mesmo trouxe,
porque ele estava chamando cachorro caixa”.
Há alguns complementos também
muito frequente: “Estava chamando
cachorro caixa e Jesus Genésio”. “Ele
ontem chegou em casa chamando urubu de meu-louro”.
Não tem nenhum que se diga:
Usa-se para
reforçar uma qualidade qualquer de determinada coisa: "Eu vim aqui nesta loja procurar uma camisa, mas não tem nenhuma
que se diga: 'Esta aqui serve'."
"Aquele homem tem seis filhos, mas não tem nenhum que se diga:
'Esse aí é honesto'."
Seguiu por um vasto campo
era
um deserto esquisito
não
havia um arvoredo
que
se dissesse: é bonito (...)
(Leandro Gomes de
Barros, Estória do Reino da Pedra Fina,
ou Moizaniel e Angeltrina)