No filme Deserto Vermelho (“Il Deserto Rosso”, 1964), de Michelangelo Antonioni, há uma cena em que a mãe (Monica Vitti) tenta consolar o filho pequeno, que está doente. O menino, ao que tudo indica, ficou paralítico da cintura para baixo. A mãe, para ajudá-lo a adormecer, conta a ele uma história.
Era uma vez uma garota que
morava numa ilha distante, e gostava de nadar no mar o tempo inteiro. Um dia,
ela está nadando quando vê aproximar-se da ilha um navio misterioso. Ela nada
para perto dele... e vê que o navio está deserto, não há ninguém a bordo. O
navio muda de direção sozinho e vai embora, mas a menina se assusta e, para se
refugiar, nada para o interior de uma caverna cheia de rochas, à beira-mar, por
onde o oceano penetra. E quando ela nada para o interior da caverna, ela começa
a escutar vozes que cantam. E vê que as rochas são arredondadas; parecem formas
humanas.
– Quem estava cantando? –
pergunta o menino.
– Todos – diz ela. – Todos
cantavam.
São as rochas (aparentemente)
que cantam, para acolher a garota.
Aqui, a sequência inteira:
Esse canto misterioso, que
parece brotar das rochas e que surge como uma espécie de acolhida, de proteção,
não é explicado no filme, onde esta cena é isolada (“isola” = ilha), não se
comunica com o restante do filme. Que, como todo filme de Antonioni, é um filme
sobre a incomunicabilidade, a nossa incapacidade de “ser” o Outro, mesmo por um
breve instante.
Giuliana, a mãe que conta
essa história, queixa-se noutro momento do filme que quando uma pessoa se corta
na mão outras pessoas não sentem a dor. E lembra depois que quando duas gotas
de chuva se tocam, o resultado é uma gota maior: 1+1 = 1. Por que não é assim conosco, com as pessoas?...
“Sorôco, sua mãe, sua filha”
é o terceiro conto de Primeiras Estórias
(1962) de Guimarães Rosa, e traz consigo, por mera coincidência, alguns desses
temas de solidão, incomunicabilidade e música.
Sorôco é um homem corpulento,
barbudo, que está conduzindo para a estação do trem a mãe e a filha, que são
mentalmente perturbadas e vão para o hospício de Barbacena; veio até um vagão
de trem especial para conduzi-las, “assim
repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de
cadeia, para os presos”.
Como em outros contos do
livro, não estamos mais no miolo do Grande Sertão. Estamos naquelas franjas sob
regência urbana, e o autor informa: ”Quem
pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro”. Pessoas e ações
diretas dos governos são muito presentes em Primeiras
Estórias.
O povo da vila observa o
trajeto dos três com comiseração, lamentando a internação das duas, mas
reconhecendo que é o jeito, “Sorôco tinha
tido muita paciência”, “com os anos,
elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda”.
Sorôco (“Senhor Oco”?) é um
homem que perdeu a banda feminina de sua existência, é um homem sem “Anima”.
Viúvo, tem que se desfazer agora da “velha”
e da “filha”, e lá vem, “dando o braço a elas, uma de cada lado”.
A mãe vem toda de preto. A loucura da filha é espalhafatosa: ela se enfeita de
panos e papéis aleatórios, coloridos, roupas umas por cima das outras. “Sem tanto que diferentes, elas se
assemelhavam”.
Sorôco é um elemento
masculino que perdeu a mulher do Presente (a esposa) mas conserva consigo a do
Passado (a mãe) e a do Futuro (a filha). Elas duas estão ali para preencher o
“oco” que ele traz dentro de si.
As duas são vistas com
estranheza, mas com simpatia. E quando o trio chega à estação do trem, a filha
começa misteriosamente a cantar. Cantar o quê? Ninguém sabe: uma cantiga
inventada, brotada da doidice dela mesma, mas que traz consigo um fascínio, uma
atração:
A moça, aí, tornou a cantar, virada para o
povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em
espetáculo, mas representava de outras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu
a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor
extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a
cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não
entendia.
Essa espécie de transmissão
telepática lembra o conto “Pirlimpsiquice” (falarei dele qualquer dia destes),
em que garotos estão fazendo improvisos num palco de teatro e, sem acerto
prévio, pulam, quase telepaticamente, de uma história combinada para outra
não-combinada.
Cantigas são parte importante
da obra de Guimarães Rosa, que muitas vezes chega a escrever a letra que seus
personagens estão cantando: é a “cantiga brava” dos bandoleiros em “Augusto
Matraga”, é a cantiga do Siruiz, que evoca a Riobaldo os momentos épicos do Grande Sertão. Em “Sorôco”, a cantiga
parece ser sem letra, uma modulação de voz somente,
“...o acorçôo do canto, das duas, aquela
chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida,
que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas
pelo antes, pelo depois.”
O Trem chega, engata o vagão
onde as duas já estavam instaladas, e vai embora.
Sorôco volta, e a população
assiste seu regresso, com “as vistas
neblinadas”. Mas aí alguma coisa acontece. Aquela cantiga da filha, tão
sentida e tão sem-sentido que despertou a mãe, contagiando-a, fica ali também
com o pai:
Num rompido – ele começou a cantar,
alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga mesma, de desatino, que
as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando. (...) E foi sem combinação, nem ninguém entendia o
que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a
acompanhar aquele canto sem razão! E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta
que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase corriam, ninguém deixasse de
cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.
Todos, todos cantavam. Uma
canção que brotou da Imaginação (a filha), contaminou a Memória (a mãe), e dali
preencheu vazio do homem, que foi capaz de transferir esse canto para todos os
que acompanhavam seu momento de tristeza.
Paulo Rónai, num dos seus
prefácios rosianos, observa que os doidos são um grupo de personagens que
fascinam o autor. Rosa vê neles uma espécie de irrupção do insólito no real,
uma janela que se abre para outro mundo sem deixar de estar plantada neste.
Rosa é um brincalhão com
palavras e, nesta releitura de agora, pequenos detalhes começaram a me chamar a
atenção neste conto. A certa altura, as notas musicais começam a brotar, meio
camufladas no discurso (entre as páginas 16 e 18 da edição original). Enumero
abaixo as incidências, na ordem em que aparecem, dando destaque de negrito para
a sílaba musical em cada frase:
Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. (p. 16)
Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas... (p. 17)
“Ela não faz nada, seo Agente...” (p. 17)
Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão... (p. 18)
O triste do homem, lá, decretado... (p. 18)
...parecia que ia perder e de si, parar de ser. (p. 18)
...de uma vez, de dó do Sorôco... (p. 18)
Estarei “viajando” ao escutar
esse do-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó num conto musical?
Não devemos esquecer o lado
lúdico, gracejador de Rosa – autor capaz de colocar num índice os títulos dos
contos por ordem alfabética, menos um conjunto de três, bem no meio, com as
suas iniciais “J-G-R”. Ou de chamar a
atenção de João Cabral de Melo Neto para o uso pouco convencional de uma
exclamação: “.!.” – assim, entre dois pontos, e explicar que era para sugerir
visualmente o jato de sangue descrito na cena.
O problema com os grandes
inventadores é que em tudo deles a gente fica querendo adivinhar invenção.