Machado de Assis era um escritor capaz de condensar toda uma estética (se não uma ética inteira) numa única frase. Entre tantos exemplos, me vem de vez em quando à memória o comentário cruel de Brás Cubas, em suas Memórias Póstumas (1881).
Brás Cubas está
no Alto da Tijuca, visitando D. Eusébia, uma senhora amiga da família, e começa
a encompridar olhos para a filha desta, Eugênia, menina de dezesseis anos que
ele chama “a flor da moita”. Em meio à conversa ele descobre, com direito a uma
gafe, que a menina é coxa de nascença. E me vem com esta reflexão sublime:
“Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se
bonita?”
Não sei se tem
nome esta figura de estilo, mas em literatura, onde tudo é nome, ter nome é o
de menos. Chamo a esse artifício “A Ordem dos Fatores”, para fechar o meu
raciocínio dizendo: em literatura, a ordem dos fatores altera, sim, o produto. (E
completo, com certa ousadia: “Esta é a razão de ser da própria literatura”).
Podemos começar um enunciado com A e terminá-lo com B; se invertermos o processo, as consequências serão outras. O que era premissa torna-se conclusão, e vice-versa. E a primeira lição que lucramos é: o primeiro termo é a concessão que fazemos ao interlocutor, é o elemento para o qual contamos com sua concordância tácita, para abrir o diálogo. O segundo elemento é o trunfo que estalamos na mesa, encerrando o assunto. Todo raciocínio assim é uma pequena armadilha retórica.
A respeito desse drible tipicamente machadiano, Flora Sussekind
(em Cinematógrafo das Letras, 1987) lembra um comentário de Roberto
Schwarz sobre os narradores da segunda fase de romancista de Machado:
Isto é, o narrador que a todo momento está
se desidentificando da posição que ocupava na frase anterior, no parágrafo
anterior, no capítulo anterior ou no episódio anterior. (...) É uma espécie de
desidentificação permanente.
(em Machado de Assis: Antologia e Estudos,
Ática, 1982)
Podemos começar um enunciado com A e terminá-lo com B; se invertermos o processo, as consequências serão outras. O que era premissa torna-se conclusão, e vice-versa. E a primeira lição que lucramos é: o primeiro termo é a concessão que fazemos ao interlocutor, é o elemento para o qual contamos com sua concordância tácita, para abrir o diálogo. O segundo elemento é o trunfo que estalamos na mesa, encerrando o assunto. Todo raciocínio assim é uma pequena armadilha retórica.
Bertolt Brecht,
velho prestidigitador de dialéticas, maneja isto como ninguém. Veja-se este
poeminha curto, que traduzi via inglês (“Everything Changes”), e que consta dos
seus Poemas Americanos 1941-1947:
TUDO MUDA
Tudo muda. Você pode começar
tudo, de novo, com seu último
suspiro.
Mas o que aconteceu, está
acontecido. E a água
que você misturou ao vinho não
pode ser
trazida de volta.
O que aconteceu, está
acontecido. A água
que você misturou ao vinho não
pode ser
trazida de volta, mas
tudo muda. Você pode começar
tudo, de novo, com seu último
suspiro.
Nas duas vezes,
é a palavra “mas” o gonzo em torno do qual o poema gira e mostra seu reverso.
Isso é assim, MAS isso também é assado. O poeta sugere duas possibilidades,
ambas plausíveis ao nosso senso comum. A primeira delas é o dado frio,
objetivo, que o mundo nos propõe: a segunda é a nossa resposta, a linha de ação
que decidimos seguir. Qual das duas ordens
é a sua?
Brecht repetiu
este artifício machadiano em pelo menos mais um poema, “Uma Cama Para Passar a
Noite”, que também traduzi do inglês (“A Bed For The Night”), dos Poemas dos Anos da Crise, 1929-1933:
UMA CAMA PARA PASSAR A NOITE
Ouvi dizer que em Nova York
na esquina da Rua 26 com a
Broadway
há um homem que fica durante
os meses do inverno
pedindo aos transeuntes que
passam por ali
um lugar para os sem-teto
dormirem.
Isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as
relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da
exploração;
mas
alguns homens vão ter uma cama
onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o
vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai
cair na calçada vazia.
Não abaixe o livro quando ler
isto, leitor.
Alguns homens vão ter onde
passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o
vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai
cair na calçada vazia.
Mas
isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as
relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da
exploração.
A estrutura é
mais longa e complexa, mas o processo é o mesmo. O poeta enuncia duas verdades.
Uma de ordem local, pessoal, meramente episódica; a segunda, de ordem impessoal
e coletiva, tendo a ver com a situação social considerada de forma abstrata. E depois as inverte.
Muita gente,
sabendo que Brecht foi comunista, vai dizer que ele menosprezava o episódio
pessoal (a cama para passar a noite) e se preocupava apenas com as grandes
mudanças sociais (o fim da era da exploração). Ou seja: que a mentalidade do
poeta está reproduzida na segunda ordenação dos termos.
Em favor desta
hipótese, há o fato de que foi a esse ponto de vista que o poeta deu a honra de
“fechar”, sua argumentação com essas três linhas indignadas, implacáveis.
MAS essa
interpretação talvez esteja esquecendo que Brecht, antes e acima de ser
comunista, era um dramaturgo, e que um dramaturgo não lida com verdades
abstratas, e sim com ações concretas. Ninguém pode colocar num palco “as
relações entre os homens”, mas pode colocar um homem dormindo na calçada, sob a
neve.
Essas idas e
vindas permanentes entre idéias abstratas e cenas concretas são a base e o
fundamento da dramaturgia de idéias. Acho que foi o cineasta Alberto Cavalcanti
quem disse uma vez: “Você pode escrever um livro sobre o sistema nacional dos
correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta”. É o concreto, sem o qual não se chega ao abstrato – pelo menos nas artes da
encenação.
E outra: Brecht
não apenas lançava mão desse processo como o explicitava, mostrava, exibia
despudoradamente ao escrever poemas desse tipo. Se isso, então aquilo. Se
aquilo, então isso. Era parte do seu teatro, essa auto-denunciação, como um
mágico-de-palco que fosse o “Mister M” de si mesmo e, no próprio momento do
truque, explicasse à platéia o passo-a-passo do truque.
Como ele
aconselhava aos seus atores: “Mostre que está mostrando”.