terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

4553) A Idade da Burrice (25.2.2020)




Já devo ter escrito aqui neste blog a respeito do Darwin Award, um prêmio humorístico que todo ano é concedido, simbolicamente, a pessoas que morrem acidentalmente por terem cometido uma enorme burrice.

O nome do prêmio alude à Teoria da Evolução, de Darwin, e sugere, com certo sarcasmo cruel, que a Humanidade evolui assim: os muito burros acabam se matando de tanta burrice, e os menos burrinhos (nós) sobrevivemos.

Não é uma tese cientificamente comprovável, até porque muitos dos “inteligentes-4-estrelas” imaginam que são “inteligentes-5-estrelas” e acabam se metendo em complicações das quais não conseguem mais sair. And so it goes, diria Kurt Vonnegut Jr.  Vida que segue.


Hoje em dia, nas redes sociais, existe uma verdadeira conspiração de pessoas inteligentes contra as pessoas burras. Exemplos concretos de burrice-alheia são fotografados, compartilhados, escarnecidos. Por que? Provavelmente porque ver a burrice alheia nos dá a ilusão de que somos inteligentes. “Ah, isso aí eu não faria nunca, eu não sou tapado a esse ponto!...” 

E existe, em muitas dessas críticas ou gozações, um indisfarçável tom de superioridade social. Mangar de quem é burro é tão divertido quanto mangar de quem é pobre. Ficamos nos sentindo ora um Ludovico Sabetudo, ora um Tio Patinhas. 


A burrice é perigosa, mas igualmente perigoso é quando o esnobismo social nos dá prazer em ridicularizar uma pessoa que compra um produto pensando que era outra coisa, que não entende como um Banco funciona, que pede um prato num restaurante e se horroriza quando ele é servido, que vai para o exterior e se assombra porque lá não falam o seu idioma, que destrói um aparelho por não fazer idéia de como ele é usado, que não sabe pôr o cinto de segurança no avião...


Esta página no link abaixo enumera algumas dessas mancadas. Muitas delas inadmissíveis. Outras, eu próprio poderia cometer por distração, ou por burrice mesmo. (Eu não sei trocar uma resistência de chuveiro, não sei pregar um botão, não sei andar de bicicleta, não sei plugar os periféricos do meu computador – tenho que pedir a alguém.)

(As fotos que ilustram este texto são dessa página.)

Vejo nos “Comentários Da Internet” a esse tipo de páginas (já li dezenas delas) um ranço de desprezo, quase de ódio, pelas pessoas burras. Um fato bobo que poderia ser apenas engraçado acaba gerando um sentimento diferente, frases tipo “ é bom que morra mesmo”, etc.

Lembro das comédias do cinema mudo, das trapalhadas em que se metiam O Gordo e O Magro, ou Buster Keaton, ou mesmo Os Três Patetas. Eles praticavam bobagens absurdas o tempo inteiro, demoliam casas, desconjuntavam automóveis, infernizavam jantares, pela sua absoluta incapacidade de fazer funcionar a coisa mais simples.


O cinema vinha abaixo de risadas, mas eu sempre senti nessas risadas um viés de simpatia. Pode ser projeção emocional minha, que tenho um gene samaritano. Mas eu sentia naquele cinema cheio de adultos e de crianças ums simpatia instintiva por aqueles desastrados. Um riso sem desprezo. Como quando nos divertimos ao ver um filho pequeno, um neto, tentando uma pequena façanha motora e não conseguindo, ou atrapalhando palavras que ainda não conhece direito. Rimos daquilo, mas é um riso de compreensão, de acolhimento afetivo, não de menosprezo.

Não vou me deter aqui nesse desprezo, que é o vinagre universal dos nossos tempos. Quero falar mesmo é da burrice, se é burrice a palavra adequada.

Talvez a palavra mais certa seja justamente “inadequação”. As pessoas vivem em mundos sociais diferentes, e quando passam de um para o outro faltam-lhes as informações necessárias para se adequarem ao outro. Quando saem da sua “bolha”, da sua “zona de conforto”, nada funciona do mesmo jeito, e o mundo não as preparou para isso. Preparou para que vivessem atrás de cancelas, de grades, de rotinas.


Essas pessoas “burras” irão mesmo se auto-extinguir, como sugerem os gozadores por trás do Darwin Award? Não acredito. E lembro aqui um dos meus filmes preferidos, Idiocracia (Mike Judge, 2006).

A premissa de Idiocracia, exposta logo nas sequências iniciais, é de que o mundo do futuro vai ser inteiramente povoado por idiotas, pela simples razão de que as “pessoas inteligentes” se programam para ter 1 ou 2 filhos, e os idiotas continuam tendo dúzias. O filme é uma comédia escrachada, e não há que exigir verossimilhança científica numa proposta como essa. Idiocracia é apenas uma fábula escrachada, no estilo Monty Python.

O problema é outro. Esse mundo do ano 2505 é asustadoramente parecido com o de hoje, porque os absurdos que vemos na tela são meras extrapolações de coisas que acompanhamos em nosso dia-a-dia. Cada alfinetada ali dói pra caramba. Há um escracho contínuo com a publicidade, a televisão, as corporações, os governos, a ciência, a política, o show-business... Nada escapa. Ninguém sobrevive.

A gente tem a tentação de voltar àquelas queixas apocalípticas de sempre – falhamos como civilização, o projeto da Humanidade deu com os burros nágua, etc.

Nesse mundo futuro, no entanto, a gente percebe que a burrice não é um defeito pessoal, uma limitação das pessoas, algo como um ouvido surdo ou um olho vesgo. A burrice social é o resultado de séculos de emburrecimento planejado. Um processo que em algum momento alguém achou que seria necessário – para manter as massas sob controle. Multidões burras, trabalhando feito escravos e se dopando com produtos de má qualidade disputados a tapa.

Só que havia uma porção de variáveis não-previstas, e o sistema que programou a burrice foi engolido e digerido por ela. A burrice social virou um vírus incontrolável. O Sistema deu sem querer um tiro no pé, que gangrenou.

O futuro com que Idiocracia nos ameaça é o prolongamento lógico do sistema atual, no qual se supõe que as pessoas serão capazes de passar mais mil anos trabalhando 12 horas por dia, comendo cheetos com Coca-Cola e votando em quem lhes dizem para votar. Não vão. Como se diz por aí, é mais fácil destruir um planeta do que acabar com o capitalismo. Ou evitar que ele se suicide.