A mãe arrepanhou as saias e sentou no batente da escadinha curta que descia até a terra do quintal.
O menino estava
tentando encaixar de volta uma peça de madeira que tinha se soltado de um
brinquedo. Ele sabia onde era, e como podia ser colocada de volta, só não tinha
a destreza de fazê-lo, mas estava tentando.
Rik, rik, rik, rik. A faca foi amolada em impulsos rápidos, na aresta
do degrau de pedra.
O menino sentiu o
olhar dela, ergueu a cabeça e ficou de pé, largando o brinquedo.
A mãe estava ajeitando
umas vasilhas. Olhou para ele, indicou com o queixo:
-- Pega aquela galinha
ai. A que eu deixei solta.
As outras pareciam
estar entendendo o que se passava, porque um frêmito medroso as agitava sem parar
por trás das telas enferrujadas e das grades de bambu.
A galinha solta era
uma mariscada de preto e branco, com um tronco vigoroso.
-- Vai fazer o que com
ela?
-- Pare de perguntar
uma coisa quando você já sabe. Só pergunte o que não souber mesmo. Vá, vá,
deixe de dar maçada.
O menino deu alguns
passos na direção da galinha. Na sua experiência até então, de brincadeiras de
quintal, as galinhas entregavam-se com alacridade e boa fé às suas perseguições
inocentes, que nunca davam em nada. Conduzi-la agora ao cadafalso, porém, era
outra coisa.
Eu sei que vai se dar alguma
coisa, diziam os olhos erráticos e apavorados da galinha. Seu instinto de presa
devia ter alguns milhões de anos. Ela reconhecia o que estava para acontecer.
Rik, rik.
O menino avançou, a
galinha espanejou suas penas e recuou meio metro, mas manteve-se de olho
pregado nele, em guarda total. “Por que não foge?”, pensou ele.
-- E se ela voar por
cima do muro? – perguntou.
-- Não voa – disse a
mãe.
-- Eu já vi essa
galinha subir mais do que a minha altura.
-- Por isso mesmo eu
cortei a asa esquerda dela. Vá, agarre ela, bote moral.
-- E se ela me
beliscar?
-- Você não é homem
não? – E com o senso de humor temperando a impaciência: - Se fizer muita cera
eu pego essa faca aqui e lhe capo.
A galinha descreveu
alguns semicírculos salpicados de cocoricós. A cada vez se detinha. Mesmo que
pudesse voar por cima do muro, talvez ela preferisse ficar ali, ativando os reflexos
milenares do balé-da-presa, com o fatalismo resignado de quem nunca predou
ninguém.
Um pulo, um
engalfinhamento. Ao aviso da mãe ele agarrou, na primeira chance que teve, as
duas asas numa mão só. Com a outra segurou o pescoço, para se prevenir contra o
bico. Ali perto morava uma menina que perdeu um olho assim.
A ave parecia ter
metade da altura dele.
Era trêmula, morna, e emitia um zumbido de vida própria, como o da geladeira. Ele a trouxe
debatendo-se sem muita tática, e a deitou no batente. A mãe se soergueu com
agilidade, plantou o pé descalço e sujo nas asas desiguais, maltratando um
pouco. Era disto que a galinha parecia estar se queixando. Ela não imaginava
nada depois dos maus-tratos que a incomodavam agora.
A mãe puxou a faca
para perto, e o prato fundo de barro. Prendendo a faca na palma da mão direita,
usou o polegar e o indicador em pinça para arrancar as penas do pescoço da ave,
largando-as pelo chão, sem ligar.
A galinha gorgolejou.
Com um gesto vigoroso da mão esquerda, a mãe puxou a cabeça da ave para trás,
expôs o pescoço pelado e abrasivo. Com os dedos retesados da mão direita deu
uma série ritmada de pancadas no pescoço.
-- Pra chamar o
sangue -- explicou. -- Pegue o prato. Quando eu cortar, enfie o prato aqui, por baixo dela.
A faca desceu na carne
avermelhada, nas cartilagens, fazendo brotar uma golfada rubra que o menino
conseguiu recolher no prato. A força das golfadas foi diminuindo, diminuindo, e depois o
intervalo entre elas foi aumentando.
O prato estava vermelho
e refletia o brilho do céu lá fora.
Houve um gesto rápido,
um ruído abafado como se alguém tivesse arrancado a cabeça de uma criatura.
A mãe se virou olhou
para ele e disse:
-- Você não gosta
tanto de cabidela?
-- Sim!
-- Não gosta tanto de comer no jantar aquele sangue cozido, que fica feito uma borracha escura, e você
corta com a faca e espeta no garfo?
-- Sim!
-- Pois é tudo feito
com isso aí. Traga, tenha cuidado.
A panelona dágua fumaçava.
Já estava meio fumaçando quando ele tinha ido brincar no quintal. Quando nem
ele nem ela sabiam ainda o que ia acontecer. Só a mãe.