São duas funções do discurso narrativo para as quais não
temos um termo em português unanimemente aceito.
Um spoiler é
qualquer tipo de informação capaz de estragar (=”to spoil”) o prazer da
descoberta gradual de uma narrativa. Acontece na literatura, no cinema, na TV e
por aí vai.
O spoiler fundador
na minha infância foi um cartum do “Amigo da Onça”, o famoso personagem de
Péricles na revista O Cruzeiro. O Amigo
da Onça é aquele cara cujo prazer é sacanear os outros, botá-los em situações
difíceis, pregar-lhes peças de mau gosto, passar-lhes a perna.
No cartum, uma fila enorme de pessoas está na bilheteria
do cinema, comprando os ingressos, e o Amigo da Onça sai bem satisfeito ao
final da sessão anterior, repetindo, enquanto caminha ao longo da fila: “O
assassino é o pai da moça... o assassino é o pai da moça...”
Para quem gosta de filme policial, nada mais chato do que
saber de antemão quem é o criminoso.
Li por aí que um estudo numa universidade dos EUA
comprovou uma coisa interessante: o spoiler,
para a maioria das pessoas, mais aumenta do que diminui o prazer de ler/ver uma
história. Ou seja, justamente o contrário do que se imagina. Ao que parece, as
pessoas preferem saber, desde antes, como a história acaba. Por que?
Acho que entra aqui um pouco da famosa teoria de Alfred
Hitchcock sobre a surpresa e o suspense. Dizia ele que a surpresa,
no cinema, produz um choque violento mas de curta duração, por ser algo
inesperado que acontece de repente.
O suspense, por outro lado, é algo que a gente sabe que vai acontecer, ou que pode acontecer, e isso faz a gente ficar
se roendo de angústia durante horas.
São dois efeitos diferentes; cabe ao autor perceber qual
deles funciona melhor em cada episódio da história que está contando.
Quem gosta dos finais surpreendentes, da elucidação de um
mistério, se chateia com o spoiler
porque ele estraga o prazer da descoberta. O estudo nos EUA revelou, por outro
lado, que muitas vezes o público, sabendo de antemão o desfecho do filme (ou do
livro) sente-se mais à vontade para prestar atenção em outras coisas, saboreia
melhor outros aspectos da narrativa, percebendo de antemão para onde apontam
certos detalhes.
Quero defender agora a existência de outra função do
discurso narrativo, da técnica de contar uma história. Uma função que é o
contrário de um spoiler.
Eu o chamo de whetter,
do verbo “to whet”, que significa estimular, aguçar, etc.
Para os que se incomodam com termos em inglês, sugiro que
usem o seguinte:
Em vez de um spoiler,
“um desmancha-prazer”.
Em vez de um whetter,
“um abridor-de-apetite”.
Um abridor-de-apetite é um trecho da narrativa em que o
narrador dá a impressão de que vai revelar alguma coisa importante lá na
frente, mas não o faz. Faz apenas uma insinuação, uma indireta.
São aqueles trechos tipo assim:
Quando chegamos à casa do Dr. Alencar, ele guardou o carro na garagem e
enquanto eu me encaminhava para porta de frente percebi que ele retirava alguma
coisa da mala do carro, um detalhe que
naquele momento não despertou minha curiosidade.
Não é um spoiler.
Nenhuma revelação foi feita, mas o narrador levantou uma lebre, pôs uma pulga
atrás da nossa orelha. Pode haver até um comentário mais explícito:
O choque da descoberta do cadáver me fez não dar muita importância ao fato de que havia um livro caído no
chão, a certa distância. Não conferi o que era, e viria a me arrepender disso tempos depois.
Há sempre um toque de premonição por parte do personagem,
ou de lembrança retrospectiva, quando é uma história narrada na primeira
pessoa:
Ao chegar naquela vila do interior, minha única expectativa era a de alguns
meses tranquilos enquanto finalizava meu livro; eu mal poderia imaginar o pesadelo que me aguardava por trás
daquelas fachadas pacíficas e daqueles muros cobertos de hera.
Qual a função desses comentários, que em principio são
desnecessários à narração em si? Sua função é jogar lá no futuro da história uma
corda com gancho, daquelas usadas pelos alpinistas, que prenda nossa atenção lá
adiante e nos ajude a seguir até o ponto do mistério anunciado.
O whetter serve
para isso: para gerar uma interrogação, e não uma resposta antecipada, como é o
caso do spoiler. São duas figuras do
discurso narrativo que podem ser utilizadas, inclusive, dentro de um mesmo
conto ou romance ou roteiro.
Ou até num mesmo trecho, como no famosíssimo começo de A Judgement in Stone (1977) de Ruth
Rendell:
Eunice Parchman assassinou a família Coverdale porque não sabia ler nem
escrever.
(A edição brasileira de A Judgement in Stone)
Esta frase inicial de um romance de crime é
frequentemente citada porque rompe logo de início com um dogma do romance
policial, ao dizer, de chofre, quem é o criminoso, quem foram as vítimas, e
qual foi o motivo. Um mega-spoiler,
se visto por um raciocínio tacanho.
A arte de Ms. Rendell (uma escritora fina, e uma
frequentadora corajosa dos desvãos da alma) está em revelar os fatos (através
de um possivel spoiler) e ao mesmo
tempo instaurar uma interrogação gigantesca (através de um whetter).