Uma das melhores definições de Cantoria de Viola foi
produzida, por incrível que pareça, por um rapaz jovem, carioca, que estava
vendo uma cantoria pela primeira vez. Ou seja – um leigo total.
Foi num bar do Rio de Janeiro, onde uma dupla de
repentistas estava se apresentando, sentada no “pé da parede”, glosando motes
entregues na hora, ou comentando em versos algumas coisas que aconteciam naquele instante.
E o rapaz falou para os amigos:
– Que maneiro. Eles fazem verso em tempo real.
“Tempo real” é uma dessas expressões típicas da Era da
Internet, quando nós, deslumbrados como um tupinambá diante de espelhinhos e
tesouras, achamos até difícil acreditar que estamos recebendo textos, imagens,
áudios, o escambau, produzidos naquele instante, do outro lado do mundo.
O repentista faz o verso na hora. Não existe aquele delay entre o fato, a percepção do fato,
o armazenamento da informação, a consulta, a inspiração, a criação de um verso,
a transmissão, a recepção... Não. Cantoria é tempo real. O copo cai, e o
cantador no meio do verso que já estava cantando comenta que o copo caiu.
Como ele faz isso? Não sei, se eu soubesse estava
fazendo, em vez de ficar aqui escrevendo umas linhas que só vão ser lidas dias
ou semanas depois. Ou seja: num tempo “não real”, num tempo em que o momento da
criação (pelo artista) e o momento da fruição (pelo público) ocorrem em
contextos diferentes.
A definição técnica, portanto, seria algo tipo:
“Verso em tempo real é aquele em que a invenção do verso
e a fruição do verso ocorrem simultaneamente, sendo esta palavra considerada
não no sentido cronométrico do termo, mas no sentido de um só momento compartilhado
em conjunto por vários agentes sociais”.
Esse “vários agentes sociais” aí é cacoete do tempo de
faculdade; se quiserem, pode trocar por “um combôi de bêbo”.
A Internet trouxe uma dimensão nova para a cantoria de
viola, a literatura de cordel, a sambada de maracatu, o coco de embolada e
várias outras formas de poesia onde o improviso está sempre aceso, pronto para
brotar a qualquer instante.
Maria Alice Amorim, da Universidade Federal de
Pernambuco, pesquisa essa nova ramificação da poética popular há tempos; tenho
aqui do lado o seu No Visgo do Improviso,
ou A Peleja Virtual entre Cibercultura e Tradição (São Paulo: Educ, 2008). Ali
ela já rastreava em primeira mão essa nova modalidade, inaugurada, ao que tudo
indica, com a Peleja Virtual entre
Américo Gomes (PB) e José Honório da Silva (PE), travada através da troca
de e-mails.
Segundo Alice, é “a primeira de que se tem notícia”,
tendo ocorrido em setembro de 1997, “logo seguida, em 21 de janeiro de 1998,
por outra experiência ainda mais ousada: a peleja, em tempo real, protagonizada
por José Honório e o médico Marcelo Mesel, em computadores instalados num bar da
Vila Vitoriano Palhares, Polo Torre, no Recife, com a participação de Américo
Gomes, que naquele momento estava em João Pessoa, Paraíba, escrevendo os
versos, mediado por uma conexão que possibilitava o bate-papo virtual”. A troca
de mensagens, registra ela, foi através de chat
via IRC.
Isso chamou a atenção de muita gente, e eu próprio travei
pelejas via email com Astier Basílio (2002), com Klévisson Viana (2005) e
depois via Facebook com Marco Haurélio (2017).
O novo livro de Maria Alice Amorim é Pelejas em Rede: Vamos Ver Quem Pode Mais (Recife: Zanzar, 2019),
onde ela aprofunda a análise dessa nova forma de embate direto, incluindo as
modalidades do maracatu rural, do samba de matuto e outras, e lançando mão de plataformas
como Orkut, Facebook, etc., que os poetas, sempre inquietos e curtidores,
utilizam para sentir até que ponto elas podem potencializar o repente.
O recente filme pernambucano Azougue Nazaré (Tiago Melo, 2018) mostra rapazes da Zona da Mata de
Pernambuco trocando provocações nas estrofes do maracatu rural cantadas ao celular
e enviadas imediatamente através de áudios de WhatsApp.
(cena de Azougue Nazaré)
Onde houver palavra, existe a possibilidade da poesia.
Onde houver troca de mensagens, existe a possibilidade do desafio. Onde houver
a simultaneidade entre duas vozes e uma platéia, existe a possibilidade do
repente pegado-na-deixa.
O livro Pelejas em
Rede é resultado da tese de doutoramento da autora no Programa de Estudos
Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PucSP, sob a orientação da saudosa
e querida professora Jerusa Pires Ferreira.
Alice faz a demarcação entre as cantorias de verdade, com
dois violeiros cantando “ao pé da parede”; as cantorias fictícias da literatura
de cordel, chamadas de “pelejas”; e as pelejas virtuais onde os poetas se
confrontam através de twitter, msn, facebook, zap e assim por diante.
Em todas existe o cultivo das formas tradicionais de
estrofe, de rima, de métrica – aquilo que podemos considerar as “cláusulas
pétreas” do Romanceiro Popular Nordestino.
E cada uma delas está se deixando contaminar pelas formas
de criação e difusão eletrônica do texto. Sempre tendo em mente o objetivo
principal do poeta popular: buscar o verso quente, palpitante, exibido ao
público no próprio instante de sua criação. E ela rastreia todas essas
variantes etimológicas e semânticas que cercam a arte trovadoresca do
improviso:
É o impulso criador que, na etimologia do trovadorismo, traz a
invenção, o inventar. Invenção que é o improvisus, o imprevisto, o
imprevisível. Improviso, evento imponderável, momentâneo, não ensaiado, repentino,
conforme Spina (1946, p. 408) e Le Goff (2009, p. 280):
Os próprios termos trobar e trobamen não são mais que
criações decalcadas no sentido das palavras latinas inventio, invenite
– da terminologia retórica de Cícero, na acepção do ato inventivo, de atividade
literária criadora (trobar suplantou desde logo o seu correspondente
latino).
O termo vem de trobar em occitano, ou seja, trouver em
francês (encontrar, em português), e define um inventor de palavras e poemas.
Ou seja, um trovador é um achador, um encontrador de
coisas, seguindo a frase célebre atribuída a Pablo Picasso: “Eu não procuro, eu
acho”.
Eu tenho pra mim que no meio desse novelo de raízes
linguísticas o verbo “trazer” também está enredado. Trovar (fazer versos) é
trazer. Me lembro na minha infância de ver as velhinhas do sítio que chegavam
lá em casa mostrando a minha mãe o que haviam trazido de presente: “Eu
truve pra senhora uma dúzia de ovos de capoeira...”
Maria Alice Amorim pega esse feixe de práticas culturais
(a inspiração, o acaso, o imprevisto, a memória, o repente) e o transporta para
o universo eletrônico. Sempre mantendo a essência da criação, que na página 163
o mestre José Alagoas explica com esta bela fórmula:
Começa no deserto, amarra o verso todinho e entrega a resposta.
Olha que coisa bonita – começa no deserto. Começa do
nada, mas logo está achando, está trazendo, está trovando, e quando menos
espera está ali um verso que, como o Universo, surgiu do nada.
Num dos capítulos, Alice pergunta: Existe um ciberrepente?. Ou seja: o verso neste novo sistema é
qualitativamente distinto do tipo de verso que se fazia antes? Tem muito
assunto para se esmiuçar aí, mas ela observa com propriedade que nas próprias
comunidades de repente pela web (portais e websaites com milhares de inscritos)
repete-se um fenômeno de auto-regulação que é típico da poesia popular: quando
um novato erra na métrica, erra na rima, quebra sem perceber o formato da
estrofe, os próprios colegas vêm em seu socorro e o corrigem: “Êpa, não é assim
que se faz”.
Conservadorismo? Que nada. Correção de rumo, porque na
poesia popular não existe um Ministério, uma Academia Normativa ou um Conselho de
Anciãos determinando o que pode e o que não pode. É a comunidade como um todo
que se pronuncia. As formas tradicionais são constantemente revitalizadas – até
mesmo para poderem absorver os novos meios de transmissão.