(Max Ernst, O Elefante Celebes, 1921)
A poesia fala por imagens inesperadas, que nos forçam a
pensar em algo pela primeira vez.
Dos recursos básicos à disposição do poeta (idéia, música,
imagem) a imagem talvez seja o que nos produz o impacto maior à primeira
leitura, porque nos evoca o mundo dos sentidos, e nos faz de maneira indireta
ter experiências visuais, auditivas, táteis, etc. através da palavra.
Quando Manuel Bandeira diz (em “Cantilena”) que “o céu
parece de algodão” está produzindo uma imagem visual, porque se trata de um dia
chuvoso e nublado, e também tátil, porque o acúmulo de nuvens no céu lembra a
textura macia, leve e difusa do algodão.
Subindo um degrau na escala das metáforas, o poeta Marcus
Accioly (em “Os bichos”) fala de “um céu de dragões entre espadas
vermelhas”. Aqui, a imagem não pode ser
tomada ao pé da letra, porque busca apenas sugerir um por-do-sol nos vastos
espaços sertanejos. Os dragões e as
espadas existem como projeções figurativas do poeta sobre as formas abstratas
das nuvens e dos raios do sol.
O Surrealismo da década de 1920 foi um movimento importante
para a libertação da linguagem poética.
Reunidos em torno do poeta André Breton e da revista La Révolution
Surréaliste, esses poetas lançaram manifestos, criaram polêmicas,
bateram-se contra a crítica literária, o governo e o clero, em nome de uma
libertação do Homem que ia além da linguagem poética.
Apesar de nascido no interior da literatura, o Surrealismo
acabou se tornando mais conhecido durante o resto do século 20 pelo cinema de
Luís Buñuel e pela pintura de Salvador Dali, Max Ernst e outros.
O objetivo dos surrealistas era reproduzir o verdadeiro
funcionamento do pensamento humano, livre de censuras impostas pela estética,
pela moral, pela lógica, etc. Isto era
conseguido em muitos casos através da “escrita automática”, em que o poeta
escrevia depressa, sem pensar.
A qualidade literária desses escritos era muito oscilante,
mas Breton argumentava que somos bitolados e deformados por fórmulas literárias
antigas e que “é preciso limpar as estrebarias da mente”.
Outro recurso empregado no interior do grupo era o poema
escrito ao acaso, em pedaços de papel onde cada poeta escrevia algo, dobrava e
passava adiante. O resultado aleatório
dessas palavras colocadas por cada um deles produzia frases de estranha beleza:
“O cadáver delicado beberá vinho novo”,
“A ostra do Senegal comerá o pão tricolor”,
etc.
A poesia surrealista caracterizou-se por essas imagens
desconexas, sem sentido, tanto assim que o termo passou a fazer parte da nossa
linguagem diária para exprimir qualquer coisa absurda: “ontem eu vivi uma
situação surrealista lá no escritório”, “o Brasil é um país surrealista”,
etc.
O impacto desse Movimento na poesia foi principalmente
através do que poderíamos chamar, não de surrealismo puro, mas de surrealismo
aplicado: a liberdade de usar as imagens mais inesperadas, mais chocantes, mais
aparentemente absurdas. O contato com as
experiências surrealistas produziu em muitos poetas uma liberação imaginativa,
enriquecendo seus recursos de comparação, de metáfora, de produção de imagens
sensoriais.
Sem a influência do Surrealismo, talvez Garcia Lorca não
tivesse a liberdade de escrever versos como estes (que lembram os quadros de
seu amigo Dali):
Os morcegos nascem
das esferas.
E o bezerro os estuda
preocupado.
Quando será o crepúsculo
de todos os relógios?
Quando essas luas brancas
se fundirão aos montões?
(“A Selva dos Relógios”).
Carlos Drummond não pode ser chamado de poeta surrealista,
mas sem a liberação surrealista seria mais difícil que produzisse versos como
estes de “Rola Mundo”:
Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada uma pomba cega.
Pablo Neruda também não escapou ao Surrealismo, presente não
apenas nas imagens mas no espírito iconoclasta de “Walking Around”:
(...)
Acontece que me canso de ser homem.
E no entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um murro no ouvido.
Seria belo
andar pelas rua empunhando um punhal verde
e dando gritos até morrer de frio.
Talvez o grande poema-livro surrealista de nossa literatura
seja a “Invenção de Orfeu” de Jorge de Lima:
Era um cavalo todo feito de lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.
O aparente absurdo da imagem surrealista típica nos leva a
uma espécie de alongamento mental, a um esforço do intelecto e da sensibilidade
para acomodar elementos disparatados. O
ensaísta Ernst Fischer dizia que “a arte não é para passar por portas abertas,
mas para abrir portas que estão fechadas”.
O absurdo poético dos surrealistas cria novas associações de
imagens e de idéias, produz emoções surpreendentes através do choque de
elementos contraditórios, força o leitor a uma reeducação da
sensibilidade.
Em seu livro-poema, Jorge de Lima fala no “planalto das
cobras laminadas”, em “céu duende”, num “subsolo gemendo lavas brancas”, em
“águas subcelestes produzidas pelas chuvas das órbitas”, imagens que a um
leitor de poesia de cem anos atrás pareceriam sem sentido mas que para um
leitor pós-século 20 adquirem um supra-sentido.
O sentido de uma imagem poética resulta de um pacto entre
autor e leitor, em que este assimila o choque inicial de surpresa e, dando ao
poeta um crédito de confiança, busca dentro de si próprio as ressonâncias de
sentido e de emoção que aquelas frases lhe despertam. Nunca serão as mesmas, é claro, mas um poema
é isto, um gerador de múltiplas ressonâncias em múltiplos leitores.
(Uma versão
ligeiramente diferente deste artigo foi publicado pela revista “Língua
Portuguesa”, da Editora Segmento (São Paulo), número 55, em maio de 2010.)