Os contos anônimos populares têm uma série de mecanismos
internos que criam uma lógica própria, diferente da que encontramos nos contos
da literatura autoral.
Eis uma história de origem africana colhida na Literatura Oral no Brasil (2ª. edição,
1978) de Luís da Câmara Cascudo.
Um caçador ia pelo mato. Encontrou uma velha caveira humana. O caçador
perguntou:
-- O que te trouxe aqui?
A caveira respondeu:
-- A língua me trouxe aqui!
O caçador foi-se embora. Procurou o rei. Disse ao rei:
-- Encontrei uma velha caveira humana no mato. Falou como se fosse pai
e mãe.
O rei disse:
-- Nunca, desde que minha mãe me suportava, ouvi dizer que uma caveira
falasse.
O rei intimou a Álkali, o Saba e o Degi e lhes perguntou se tinham
ouvido falar no assunto. Nenhum homem prudente havia sabido e o rei decidiu
mandar uma guarda com o caçador para o mato e verificar se o caso era
verdadeiro, conforme fosse a razão. A guarda acompanhou o caçador ao mato com
ordem de matá-lo no lugar onde ele tivesse mentido. A guarda e o caçador
encontraram a caveira. O caçador dirigiu-se à caveira:
- Caveira, fala! – A caveira ficou silenciosa. O caçador perguntou
depois: -- Quem te trouxe para aqui?
A caveira não quis responder. Durante todo o longo dia o caçador rogou
que a caveira falasse sem que esta respondesse. À tarde a guarda disse ao
caçador que conseguisse a caveira falar e, quando nada foi possível, matou-o de
acordo com as ordens do rei.
Quando a guarda se foi embora, a cabeça abriu a boca e perguntou à
cabeça recém-decepada do caçador:
-- Quem te trouxe para aqui?
A cabeça do caçador respondeu:
-- A língua me conduziu para aqui!...
O elemento mais visível é o diálogo com o sobrenatural,
no caso, a caveira. Um tema muito genérico, enriquecido por dois detalhes:
1)
O encontro tanto é casual como parece uma
fatalidade. O caçador não estava à procura nenhuma caveira. No instante em que
encontra a caveira, seu destino está selado. Algo vai acontecer.
2)
O homem interpela a caveira, sem motivo nenhum
aparente. É ele quem inicia o diálogo, portanto, embora o encontro possa ter
sido casual, ele teve a iniciativa de “abrir a porta” e se sujeitar às
consequências, quando podia ter passado direto. Mas, como qualquer estudioso da
Narrativa sabe – se fizesse assim não haveria a história.
Quando o homem se dirige a ela, a caveira responde de
imediato. E o diálogo se encerra. É como se o homem não tivesse maior
curiosidade no que a caveira poderia lhe dizer a mais. Assim que a caveira
responde ele faz meia volta e vai direto contar ao rei o que viu e, por
consequência disso, condenar-se à morte.
Numa história “com psicologia”, o leitor se perguntaria: “Mas
por que não perguntou mais coisas à caveira? Por que foi contar ao rei?”.
Nos contos populares, é frequente que se narre a história
“do lado de fora” dos personagens, sem esmiuçar seus sentimentos ou suas
motivações. No máximo, uma referência breve a uma emoção: “O menino ficou com
medo e saiu correndo... O homem era ambicioso e procurou tirar vantagem
daquilo... A camponesa se afeiçoou àquele bicho e levou-o para sua
casa...” Neste caso, podemos apenas
especular sobre o que levou o homem a ir contar ao rei.
Ouvindo a palavra “rei” nossa primeira intenção é
imaginar um palácio, uma corte, um trono, etc.
Mas se o conto é africano pode muito bem se tratar de um “rei” local, um
chefe da tribo, a quem qualquer cidadão tem acesso imediato, de modo que o
caçador vai direto a ele.
E o rei se comporta como os reis das histórias, com uma
ordem radical: “Vamos ver se você está falando a verdade. Se estiver mentindo,
morre.”
E ele volta acompanhando pela guarda, e evidentemente a
caveira não lhe responde. Só quando ele está morto e decapitado os dois falam –
e a última cena é a representação oposta e simétrica da primeira cena. A
caveira faz a mesma pergunta, e o caçador dá a mesma resposta.
É a tragédia grega, aquela que está anunciada e descrita
desde o começo, mas nada disso evita que se cumpra. Nada disso evita que o
personagem cometa todos os erros e dê todos os passos necessários para que a
tragédia aconteça. Os contos, mitos e lendas populares (e aí vamos desde o mito
de Édipo até esses contos de caçadores) têm essa fatalidade de um mecanismo
que, uma vez posto em movimento, executa esse movimento até o fim, sem que os
personagens consigam evitá-lo.