A gente fala tanto em literatura fantástica em forma de romances e de contos, mas vejo pouca gente discutindo a poesia fantástica e, menos ainda, a canção fantástica.
Porque o fantástico não decorre da prosa: decorre da
narrativa, e onde quer que exista a possibilidade de uma poesia narrativa,
existe a possibilidade de uma poesia fantástica.
Eu próprio comento isso aqui de vez em quando, e quem
quiser pode consultar artigos neste blog a propósito de clássicos como “A
Balada do Velho Marinheiro”, “O Barco Ébrio”, “A Atlântida” de Amílcar
Quintella Jr. e tantos outros.
Uma das minhas bandas preferidas neste gênero é The Handsome
Family, de quem ouvi falar pela primeira vez através do crítico Greil Marcus,
um dos melhores estudiosos da canção popular norte-americana. E não me refiro à
música pop que toca no rádio, e sim àquela canção folk meio soturna, meio sombria, meio transgressora, do que ele
próprio chama, no título de um livro, The
Invisible Republic.
Chamar The Handsome Family de “banda” é até meio derrisório,
porque trata-se apenas de um casal que compõe e canta em conjunto. São do
Illinois e atualmente vivem em Albuquerque, a cidade tornada famosa pelo
seriado Breaking Bad. Eles são Brett
e Rennie Sparks: ele toca violão e teclados, ela toca baixo e banjo. Ele tem
uma voz poderosa de barítono que lembra bastante a de Johnny Cash. Ela, ao que
se diz, escreve a maioria das letras, que flutua entre aqueles gêneros de “Southern
Gothic” ou “surrealismo rural”.
Muita gente talvez lembre desta canção, “Far From Any
Road”, que serviu de tema à primeira temporada da série de TV True Detective:
A grande maioria das canções do duo tem esse clima meio
terrorífico, meio sobrenatural, cinzelado com precisão por versos curtos que
nunca dizem tudo mas sugerem muita coisa, às vezes com uma narrativa inteira
condensada em uma ou duas linhas, como nas canções de Leonard Cohen ou Tom
Waits.
Uma das minhas preferidas é esta, “The Bottomless Hole”,
do álbum Singing Bones (2003):
O BURACO SEM FUNDO (tradução: BT)
Meu nome eu não recordo, mas eu vim do Ohio;
eu tinha mulher e filhos, um carro com bons pneus...
O que me tirou de casa e me levou ao fundo da terra
foi um buraco largo e escuro, que descobri atrás do celeiro.
Nós o enchíamos com todo lixo que se pode imaginar:
restos de cozinha, vacas mortas, tratores enguiçados,
mas eu nunca ouvia aquilo bater no chão lá dentro
e comecei a temer que o buraco não tivesse fundo.
Eu ia para trás do celeiro, ficava olhando o buraco,
ficava assim noite adentro, sem sossegar o juízo...
E um dia peguei cordas e uma velha banheira enferrujada,
e improvisei uma carroça para entrar lá no buraco.
Minha esposa me ajudou, foi me dando mais e mais corda
enquanto eu descia para longe da superfície
a última corda foi retesada e eu não chegara ao fim,
estava ali pendurado, balançando sobre o abismo.
Então eu puxei a faca, disse adeus a minha mulher,
cortei as cordas e me deixei cair no buraco escuro;
e ainda estou assim, caindo, caindo nesse poço maldito
mas enquanto não chegar lá embaixo, não acredito que não tenha fundo.
É uma canção naquele estilo das baladas country com música monótona e ritmo
compassado. Tem um pouco do espírito dos tall
tales do folclore norte-americano, aquelas histórias mentirosas, de coisas
absurdas contadas ao pé da fogueira para provocar o riso.
E ao mesmo tempo tem o clima obsessivo de tantos contos
de terror em que um indivíduo se deixa arrebatar por uma idéia fixa e acaba se
destruindo na tentativa de confirmá-la, ou de desmenti-la.
É um “fantástico rural” mas sem o tom brincalhão e
irônico de tantas canções rurais. É uma parábola de Kafka em paisagem de
faroeste, e a voz grave e sisuda do cantor, o arranjo minimalista, a melodia
monocórdia, tudo isto contribui para o senso de tragédia inevitável, e do
insólito aceito como uma coisa inexplicável a mais, numa vida já sem sentido.