Também fiquei apreensivo quando ouvi as notícias sobre
o incêndio da Catedral de Notre-Dame. Poucas semanas atrás eu tinha lido O Corcunda de Notre Dame (Nossa Senhora de
Paris, 1831) de Victor Hugo, e
comentei aqui no blog. A leitura me fez pensar não somente na catedral
distante, mas em todas essas edificações em pedra que se pretendem para sempre.
Eu até entendo o raciocínio, porque o mundo é cheio de construções
monumentais em pedra que estão resistindo bem há milhares de anos. Mas a pedra
também se esfarela, e vira areia.
Como na história do poderoso Ozimândias, no soneto homônimo
de Percy Bysshe Shelley (trad. minha):
Encontrei um viajante de uma terra antiga
que disse: “Duas pernas gigantes de pedra
jazem sem tronco no deserto... Perto, na areia,
um rosto semi-enterrado franze o cenho
e torce o lábio, num esgar de comando,
a mostrar que o escultor era bom leitor
dessas paixões que eternizam as coisas sem vida,
a mão que arremeda, o coração que inspira.
E no pedestal leem-se as palavras:
Meu nome é Ozimândias, Rei dos Reis;
contemplai minha obra, ó poderosos, e desesperai!
E não resta nada em volta. Entre as ruínas
daquele desastre colossal, deslimitado e nu,
estende-se apenas a areia lisa e deserta.”
O poema original é rimado. Ele é citado na ficção científica de Robert
Silverberg e na série Breaking Bad de Vince Gilligan. Ozimândias é outro nome de um personagem histórico (Ramsés II),
citado por Alan Moore na série Watchmen
e por Anne Rice em A Múmia.
O poema ecoa a derrocada de
um poder que se achava indestrutível, mas quando chega sua hora cumpre seu
destino e vira pó.
É uma alegoria fácil, ao alcance da mão de qualquer
mente, de modo que não custa nada ir um pouco além e ver no poema uma certa vindicação do pobre do
Ozimândias. Ficaram destroços bastantes dele para
inspirar um soneto que acabou lhe sendo superior e mais duradouro, mas em todo
caso não se perderam a sobrevivência (simbólica) do rosto semi-enterrado na
areia e da arrogante inscrição.
Sem elas, não haveria poema.
E quando até a pedra passa, a palavra fica. Isso era mais
ou menos a imagem que Victor Hugo propunha em 1831 no capítulo “Isto
acabará com aquilo” do Livro Quinto do seu romance sobre Notre Dame.
É o que diz o arcediago Frollo, erguendo um livro e
apontando para o edifício da catedral visto pela janela. “Um dente triunfa duma massa; o rato do Nilo mata o crocodilo; o
espadarte mata a baleia; o livro matará o edifício”. Hugo glosa este tema
ao longo de dez robustas páginas, sob a forma “a imprensa acabará com a igreja” e em
seguida “a imprensa acabará com a
arquitetura”.
Quando se refere à imprensa, não é propriamente o
jornalismo, mas o livro impresso, o papel com letras. Notre Dame já foi chamada
“o Livro dos Pobres”, porque diante de suas paredes, altares e nichos passaram sucessivas
gerações de pessoas, ao longo dos séculos, que ali encontravam os símbolos
remotos de uma sabedoria vedada aos sábios e acessível aos analfabetos.
As paredes de inúmeras catedrais estão cobertas de memes
cifrados, para quem sabe o que significa cada um daqueles detalhes. É outra
forma de saber ler, que prescinde da alfabetização das massas.
(ilustração: Edgar Moura)
O livro impresso, contudo, é ubíquo, está por toda parte,
cabe em qualquer mão, deixa-se devassar por qualquer olho que lhe conheça as
letras. Diz Hugo: “Toda civilização
começa pela teocracia e acaba pela democracia”. E nesse trecho ele vê uma
ruptura tecnológica proporcionando essa mudança. A catedral podia ser
interpretada por analfabetos, mas era preciso ir até ela. O livro requer um
certo treino; mas ele se multiplica e se amplia, até cobrir o mundo com um
tapete de mensagens escritas.
No dia do incêndio, compartilhei um texto de Sara L.
Uckelman, no Facebook, onde ela (estudiosa da Idade Média) diz:
Eu sei como é a vida das catedrais. Elas não são monumentos estáticos
ao passado. Elas são construídas, depois são incendiadas, são reconstruídas,
são ampliadas, são vítimas de pilhagem, são erguidas novamente, desabam porque
a construção não foi bem feita, e são erguidas mais uma vez, recebem novas
ampliações, são remodeladas, são alvo de bombardeios, são construídas
novamente. É a presença constante, e não a estrutura original, que tem
verdadeira importância.
Ela vê a catedral como algo mais dinâmico do que o que Victor
Hugo enxergava quando diz que “até surgir Gutenberg, é a arquitetura a escrita principal, a escrita universal”. Hugo
vê os monumentos de pedra como algo majestoso que está virando um dinossauro pesadão,
em luta contra os velociraptores que são os livros.
Curiosamente, é uma encruzilhada semelhante à de hoje,
quando o próprio livro, o papel impresso, se depara com a leveza e a velocidade e a maleabilidade da linguagem digital. “Isto acabará com
aquilo”. Chegou a vez do livro ser substituído por outra espécie dominante?
Quando Hugo diz que “a
invenção da imprensa é o maior acontecimento da história” abre caminho para
que o William Gibson possa dizer o mesmo do ciberespaço ou Philip K. Dick dizê-lo
da simulação artificial do pensamento.
“Um livro faz-se
tão depressa, custa tão pouco e pode ir tão longe!”, admira-se Hugo. Parece
que há um sonho antigo na humanidade de fazer com que o registro do pensamento
seja tão rápido, tão leve e impalpável quanto o pensamento propriamente dito; e
parece que o mundo digital tenta realizar esse sonho.
Hugo descreve o “edifício” gigantesco, de “mil andares”, formado
pelo conjunto de livros disponíveis ao ser humano. É quase o que um escritor de
hoje poderia dizer da World Wide Web, das redes sociais, da Internet em si:
Incontestavelmente é esta uma construção que cresce e se levanta em
espirais sem fim; lá há também uma confusão de línguas, atividade incessante,
labor infatigável, concurso incansável da humanidade inteira, refúgio prometido
à inteligência contra um novo dilúvio, contra uma submersão de bárbaros. É a
segunda torre de Babel do gênero humano.
Hugo fala da torre feita de papel; nós de hoje podemos
dizer o mesmo da torre digital que estamos guardando entre as nuvens. Isto
acaba sempre com aquilo. Ao que parece, continuamos marchando numa direção em
que o mais leve deixa para trás o mais pesado, o numeroso prevalece sobre o
único, o imaterial se prova mais duradouro do que o físico. A catedral é
substituída pelo livro, que é substituído pela tela eletrônica conectada, que seria no caso a terceira torre de Babel do gênero humano.