O presente texto tinha um nariz-de-cera maior do que o de
Cyrano de Bergerac, e acabou virando um texto independente, que publiquei há
pouco no blog: “Os Filhos do Barro”.
E chego ao xis da matéria: a idéia de que a Terra é
plana.
Vou logo avisando que acho essa idéia tão absurda e tão
interessante quanto a de que a Terra repousa sobre quatro elefantes
estacionados sobre o casco de uma tartaruga gigantesca (“Discworld”). Quais as
provas que tenho para achar que o mundo não é assim? Nenhuma. É pura fé,
baseada numa quase unanimidade de opiniões em tudo que li desde que aprendi a
ler.
Nem sempre foi desse jeito.
Um dos momentos de conceptual
breakthrough (ver: http://www.sf-encyclopedia.com/entry/conceptual_breakthrough)
da minha infância foi por volta dos sete anos. Recordo de abrir uma revista
(podia ser O Cruzeiro) na casa dos
meus pais, e ver uma imagem de página inteira de um planeta gigantesco ocupando
todo o céu escuro, e por baixo dele um oceano estendendo-se para todos os
lados, a perder de vista. Acho que perguntei o que era aquilo, e alguém me
respondeu: “É o Oceano Atlântico”.
Acho que a pessoa esqueceu de me explicar que o planeta
ali representado era (provavelmente) a Lua. Eu pensei que era a Terra. A Terra,
então, era redonda, flutuava no “espaço sideral” (eu já conhecia este termo) e
por baixo dela, infinitamente, se estendia esse Oceano Atlântico. Concebi então
um Universo infinito onde os astros flutuavam no vácuo e por baixo deles, em
todas as direções, existia esse oceano sem fim, esse cósmico mar.
Não durou muito esse meu surto. Logo depois me lembro de
ter colecionado o álbum de figurinhas Maravilhas
dos Espaços Siderais, e depois o Céu e
Terra, onde as coisas ganharam uma versão mais plausível, a versão da
Ciência.
E havia (para a minha geração) livros de divulgação
científica ou histórica, como Maravilhas
do Conhecimento Humano de Henry Thomas, E
a Luz se Fez de Rudolf Thiel, Nós e a
Natureza e A Magia dos Números de
Paul Karlson, Biografia da Terra de
George Gamow, O Livro da Natureza de
Fritz Kahn, pegando pela ordem em que puxo a linha da memória.
Eram livros baratos, cheios de ilustrações, e com prosa
variada e acessível. Ninguém falava em Terra Plana. Não lembro nem sequer de
histórias de FC com Terra Plana. O que havia de interessante na época, e eu
prefiro até hoje, é a hipótese da Terra Oca.
Talvez por ser mais barrocamente pseudocientífica.
(A hipótese da Terra Plana não é mais absurda ou
infundada do que tantas outras suposições pseudo-científicas que circulam por
aí há séculos. Ela simplesmente está sendo usada, hoje em dia, como um dos
“gatilhos” para corroer a credibilidade da Ciência e substituir o conhecimento
científico por um fundamentalismo qualquer. Só neste sentido, o sentido
político, ela tem importância, uma importância negativa.)
A Terra Oca foi usada por Edgar Allan Poe em pelo menos
um conto clássico: o “Manuscrito Encontrado Numa Garrafa”, história de um navio
fantasmático que tudo indica estar se dirigindo para uma abertura geológica no
Extremo Norte do globo, um abismo onde a água desce revoluteando como num
Maelstrom onde é preciso penetrar.
Lembro de um romance da coleção “Jovens do Mundo Todo”
chamado Plutonia, e que era uma
expedição russa à Terra Oca. Havia uma descrição que na época me impressionou,
dos caras que vão avançando numa abertura geológica, sólida, e eles chegam à
borda, não da Terra, mas do chão que pisam, porque o nosso solo rochoso é como
uma casca de fruta, sólida mas fina, e eles que vinham caminhando pela face
externa da casca deram a volta na borda e agora estão caminhando de volta pela
face interna da carapaça geológica do planeta.
O terceiro livro que deitou e rolou com esse tema foi The Hollow Earth (1990) de Rudy Rucker,
que pega Edgar Poe como um dos protagonistas durante o livro quase todo, e
fazendo sua turma de exploradores mergulhar até o abismo central do planeta. Há
uma sucessão feérica de ambientes cosmológicos, e um dos náufragos nesse
mergulho no espaçotempo chama-se Reynolds. (Nas suas últimas horas de vida Poe,
delirante, gritou sem parar, em desespero, chamando um tal de Reynolds, que
ainda não se sabe quem foi. Há várias hipóteses.)
A Terra Oca geralmente implica num sol central e imóvel,
parcialmente ocultado com regularidade por algum fator natural ou artificial. É
o interior de uma enorme esfera, e ali o personagem precisa se acostumar à
noção de um horizonte que se afasta cada vez mais, até desaparecer subindo. Ele se “dobra” para dentro,
sobre si mesmo, e some lá no alto. É o contrário dos horizontes secos daqui,
cortados a foice.
Lembrei uns títulos ali em cima e agora me veio na cabeça
outro clássico, Manias e Crendices em
Nome da Ciência (“Fads and Fallacies in the Name of Science”), de Martin
Gardner, que saiu aqui no começo dos anos 1960 e tem um capítulo intitulado
“Plana e Oca”. Gardner era um colunista veterano da revista Scientific American e publicou inúmeros
livros de enigmas matemáticos e de divulgação científica.
Não vou discutir a plausibilidade científica da Terra
Oca. A sua fantasia topológica de um mundo envelopando-se a si mesmo foi
reconstituída com norrau científico e visão cinemascope-barroco (como dizia
Brian Aldiss) por Arthur C. Clarke em Encontro
Com Rama (o mundo oco é uma mega-espaçonave) e visualmente por Christopher
Nolan em trechos de Interstellar (uma
estação orbital em forma de rosquinha.)
Sobre a Terra Plana e a Terra Oca já foi dito que há uma
certa coerência em algumas das concepções. Aceitando certas premissas
matemáticas, seria difícil distinguir, matematicamente, se estávamos numa Terra
como a atualmente descrita ou numa Terra da hipótese de algum deles. De certo
modo, os cálculos seriam opostos, mas simétricos. As evidências matemáticas não
bastam: é preciso colher provas experimentais. (Há inúmeras.)
A Terra Oca é necessariamente um mundo fisicamente e
visualmente muito diferente do nosso, e este é um dos trunfos do ficcionista
que quer imaginar uma história assim. Pode haver oceanos inteiros na face
interna da esfera terrestre, pendurados neste mesmíssimo instante por cima das
nossas cabeças, do lado oposto do Sol. Mantidos no lugar pela força centrífuga,
já que a esfera está rodando.
Onde seria a entrada? A primeira aventura de Poe, a do
“Manuscrito...” se passa nos arredores do Polo Norte. Já A narrativa de Arthur Gordon Pym, que ficou inacabada (mas diz-se
que conduziria à Terra Oca) se passa no Hemisfério Sul, rumo à Antártica. Em
todas as teorias daquele começo de século 19 a entrada para o Oco Central
ficava nas priximidades do Polo, para concentrar ali a dinâmica da rotação,
criando o torvelinho que leva (em tese) a embarcação para o lado oposto, geralmente
adernando-a, devido à troca brusca de vetor gravitacional.
Para quem se interessa pela literatura da imaginação,
essas teses pseudo-científicas são instrutivas porque nos mostram de que
maneira a mente humana procurar criar “modelos” que expliquem a realidade à sua
volta. Não são mais absurdas do que a crença antiga e medieval de que a Terra
está no centro de várias esferas concêntricas de cristal onde os astros estão
engastados.
O problema é quando uma dessa concepções, sem outro
argumento senão a palavra dos seus participantes, toma o poder e começa a
mandar os discordantes para a fogueira.