(Lewis Sidney e seu Follyphone, 1912)
Quem traduz uma obra literária tem que manter três fidelidades
diferentes, que às vezes entram em choque umas com as outras.
O tradutor tem que ser fiel ao Texto, ao Autor e ao Leitor.
Não existe uma hierarquia obrigatória entre essas três
fidelidades. A cada instante, em cada parágrafo, em cada frase, uma delas se
torna mais importante do que as outras.
Ser fiel ao Texto é a mais óbvia dessas difíceis fidelidades, e
é esta questão a origem da famosa frase italiana “traduttore, tradittore”,
“tradutor = traidor”. O tradutor não pode dizer uma coisa que não esteja no
texto, nem deixar de dizer uma que esteja; isso seria uma traição.
O Texto é o livro. Ele não precisa de nada mais para “ser”. Uma obra
literária é (em tese) algo assim como uma esfera, à qual nada falta e nada
sobra.
O desafio do tradutor é pegar a massinha-de-modelar que compõe
essa esfera e criar com aquilo um cubo com a mesmíssima massa total.
Ser fiel ao Texto significa ler esse texto da melhor forma
possível, que ninguém sabe qual é, mas todo mundo tenta.
Paulo Henriques Britto, um dos nossos melhores tradutores, disse
uma vez num talk-show que só lê de verdade um livro o leitor que o traduz, porque
foi obrigado a pensar cada uma daquelas frases em profundidade; porque foi
forçado a inventar aquela frase de
novo. Todas as frases do livro.
O leitor comum, de fato, apenas passa os olhos pelas frases,
acompanhando a história. Muita coisa ele não entende direito, mas passa direto
porque não tem tanta importância. Aqui uma palavra desconhecida, ali uma frase
truncada, mais adiante um trecho onde não se sabe o sujeito ou o predicado, ou
uma referência cultural obscura, uma gíria, um nome próprio desconhecido...
O leitor passa, o tradutor não. Ele se detém naquele problema
insignificante e não pode seguir em frente enquanto não tiver uma boa
explicação, um bom entendimento, um bom equivalente em português.
(Cada um tem seu método, claro. Eu geralmente deixo isso para
resolver depois, na revisão, e sigo em frente – menos quando esse trecho é indispensável
para entender o que se segue.)
Ser fiel ao Texto significa também que tem de haver fidelidade
ao jargão ou gíria (quando há), a um palavreado étnico qualquer (quando há), a
uma impressão deliberadamente confusa produzida pelo autor (quando há). É
necessário usar as figuras de linguagem do autor, a cadência sintática dele, os
cacoetes dele.
E aí passamos para o degrau seguinte, que é o da fidelidade ao
Autor. Ao espírito do Autor.
Costuma-se dizer que o Autor tem toda a liberdade, e o tradutor
nenhuma: ele só pode pisar onde o pé do Autor pisou de fato. De quem o tradutor
pode se socorrer, se ele está de mãos e pés atados ao texto?
Em geral ele se socorre do próprio Autor, e é nesse sentido que
ele tem de ser fiel: é principalmente ao Autor que ele “pergunta”. Porque ele
precisa nesse momento (deparando-se com uma frase intraduzível, às vezes
ininteligível) incorporar espiritualmente o autor, psicografá-lo, por assim
dizer. Ele precisa adivinhar o que o autor estava pensando quando escreveu
aquilo. E sem trair o espírito do autor.
Saber quem é o autor do livro ajuda muito, quando se tem acesso
a entrevistas, biografias, a outros tipos de texto assinados por ele. Conhecer
a mente do autor, seu modo de associar idéias, seu repertório de referências
memorialísticas, suas paixões pessoais, suas manias. Esta é a vantagem de
traduzir um autor clássico, um autor famoso.
Muita coisa disso acaba cedo ou tarde se refletindo no texto, e
ajuda a gente a perceber que aquele adjetivo está certamente sendo usado com
ironia, e que aquela algaravia sem sentido era uma paródia ao idioma natal de
sua avó materna. Livros de ficção, principalmente, estão cheios dessas coisas.
É uma fidelidade difícil, ao Autor, e mais perigosa ainda quando
o autor está vivo e tem acesso (idiomático, inclusive) à tradução. Pode o
tradutor estar bem confiante de que “captou” a idéia do outro e depois sofrer
um desmentido fenomenal do autor num talk-show qualquer. Paciência. Traduzir é
adivinhar.
E vem então a terceira fidelidade, que é com o Leitor. A
experiência final do Texto é na mente do leitor, e é pensando na mente dele que
o tradutor trabalha. Nas fases de revisão, principalmente, o tradutor precisa
esquecer por um instante o original e pensar apenas nisto: O leitor vai ver o
quê?
O leitor não tem acesso ao que há “por trás” da frase que lê em
português. Vai entender? Não vai? Vai perceber esse detalhe colocado pelo
autor? Não vai?
São dois movimentos que o Tradutor faz o tempo inteiro: tentar
adivinhar o que o Autor pensou, e tentar adivinhar o que o Leitor vai perceber
no texto final. Sim, é uma adivinhação. Embora o bom senso, a experiência, a
intuição estatística, uma estante inteira de obras de referência, uma Web
inteira na ponta do dedo... tudo isso ajude bastante. Ao longo de um livro,
várias vezes o tradutor fecha os olhos, tapa o nariz e dá um salto no escuro.
Ser fiel ao Leitor não é ser paternalista ou negligente. É ser
capaz de, em muitos casos isolados, virar de cabeça para baixo o texto e criar
uma coisa nova, só para que o Leitor tenha a mesma experiência de quem leu o
livro na língua original.
Todo mundo tem seus pecados, e traduzindo pulp fiction, por exemplo, eu cortei palavras do original, impedi
que ficassem no texto traduzido. Quando o sujeito quer qualificar um gangster e
usa quatro sinônimos sucessivos, não tem nada de mais usar apenas três, ora que
diabo! (A não ser – olha as exceções – quando com as quatro palavras a frase
mantém a cadência rítmica do original, flui sem tropeçar, e aí procuro manter.)
Asteriscos, notas de rodapé ou de final, explicações, tudo isso
é usado mais em benefício do Leitor do que do Autor. Estão ali para evitar que
o Leitor se erga da poltrona para procurar alguma coisa no dicionário. O uso do
hipertexto eletrônico com links está abrindo um caminho mais rico e mais veloz
para esse recurso.
Às vezes, para ajudar o leitor, a gente “encastoa” uma palavra
ou pequena explicação que não tem no texto em inglês. Acho isso um pecado de
gravidade meramente purgatorial. Posso traduzir “McKinley” por “o presidente
McKinley”, pra dar uma pista, desde que o personagem ou o narrador não pareçam
estar explicando algo desnecessário.
Existe uma cadeia de comunicação formada por Autor-Texto-Leitor,
e o tradutor é um Intruso Benigno que interfere nela de forma a que o Autor e o
Leitor não se sintam incomodados, e o Texto seja não uma cópia, mas um filho do
texto original.