(ilustração: Robert Place)
O pior de tudo nem é esse ácido queimando na boca do estômago
desde a hora do café até o escovar-dos-dentes antes de apagar de vez a luz;
como também não é a pressão nas veias do cérebro, ou artérias, sei lá o que
são, sei que parecem inchadas como se cada má notícia lida em silêncio diante
do monitor fosse o pumpear acelerado de uma bomba de encher pneu de bicicleta,
inflando esses condutos sanguíneos, que segundo se diz têm a espessura menor
que um fio de cabelo, são tão finos que os glóbulos vermelhos passam por dentro
deles em fila indiana, mas depois de meia hora de redes sociais cada veia
dessas está da grossura de um macarrão de bom calibre, o que faz a cabeça
latejar a cada mexida, a cada vez que a gente lê algo inominável e o primeiro
impulso, o primeiro e infantil impulso é ficar fazendo assim com a cabeça, não,
não, não pode ser, e a cabeça responde com fagulhas, com agulhas, com faíscas
dolorosas de nervo-exposto.
Também não é (=o pior de tudo) o fato de saber que tudo ocorre
fora dessa mesma cabeça; não há muita lógica no fato de ela ostentar tanta
pressão, afinal é lá fora a catástrofe, afinal é lá fora o desmoronar de um
mundo, afinal tanto faz para o mundo que essa cabeça esteja saboreando à noite seus
pesadelos habituais em cima do travesseiro empapado de suor quanto que esteja
aqui sendo balançada com incredulidade e (bora reconhecer) um certo teatralismo
se quem se boquiabre diante de cada despautério do real, histrionicamente, como
se houvesse por perto (nunca há) alguém que percebesse um movimento sutil e
erguesse o sobrolho e perguntasse o que é que há, você está bem, está com uma
cara engraçada.
Não, as coisas são o que são, são porque são mesmo e não adianta
balançar cabeça, bater cabeça, perder a cabeça, e caso seja mesmo necessário
continuar lendo tantos fatos espantosos às oito da matina, horário infame,
horário da cafeína dos insones, então que seja, mais vale a pena ir lá dentro e
derramar a meia caneca que já esfriou esquecida, enchê-la da droga negra fumegante,
trazê-la para o primeiro gole, que não resolve nada, e deixá-la ali ao alcance
da mão que nem se move, deixá-la entregue à entropia de si mesma, esfriando
como se a temperatura ambiente estivesse uns dez graus abaixo do que
efetivamente está.
Um placebo provisório é tentar frasezinha de efeito no
arquivo-word ainda em branco, um comentariozinho metido a esperto a respeito
desse falso paradoxo, dizer algo como: “O verão está tão brabo que a gente pode
deixar uma xícara em cima da mesa durante meia hora e o café permanece
tomável.”
O pior de tudo não é a guerrilha das dores que se deslocam corpo
afora com a rapidez de um grupo de espartaquistas bem treinados, atacando agora
nas costelas, depois no ouvido, mais tarde na sola do pé, e por aí vai; afinal
a ciência já provou que há pessoas somatizadoras e a presente vítima certamente
é uma delas; deve existir inclusive uma relação topológica entre checar a data
de um boleto e sentir a pontada no ouvido, pensar em dinheiro e sentir a
acelerada no coração, ver a manchete do sinistro e já adivinhar a alfinetada
fina bem na vértebra cervical. Há uma correspondência do-in entre cada dor do
mundo e cada ponto sensível do corpo, descobre ele, esfregando as mãos excitado
diante deste futuro Nobel. Estimulando-se a violência policial nas comunidades
encarapitadas no morro produz-se a notícia capaz de fazer o calo-de-sangue
crescer sob a pele; toda vez é assim, parece uma parceria, uma combinação sob
contrato. Cada vez que um direito fundamental é atropelado pela fúria
quadrupedal dos congressistas as veiazinhas das meninges fritam que é uma
beleza. E assim por diante.
O remédio seria então o solipsismo, o retorno larvar ao umbigo
primevo, o refúgio na caverna de cajado em punho? Parece que não, porque afinal
o vírus informacional já foi transferido para os neurônios, e mesmo em caso de exílio
voluntário não seria mais a notícia – e sim a lembrança – a deflagrar a dor
correspondente. Não. O processo já teve início. O contágio já aconteceu. Agora
é só uma questão de tempo até a pressão da realidade fazer explodir um desses
fusíveis, um desses pontos nevrálgicos, e colapsar o conjunto num monte informe
de carnes e ossos agora definitivamente imóveis e em irreparável resfriamento.
O pior de tudo nem é essa reiterada fantasia de auto-imolação, é
o fato de que a única redenção talvez seja a consciência impotente de que isso
de fato acontece, e não poder fazer nada, e não poder chorar pitanga, e não
poder redigir um obituário poético pelo leite derramado, não poder ver o mundo
pegar fogo e murmurar a mais pragmática e reconfortante das orações fúnebres, a
que diz “antes ele do que eu”. Nem é isso o pior: o pior é o retalhamento das
expectativas, o vazamento deflacionário das esperanças, a coagulação opaca dos
fluxos vitais, a sensação de que a encruzilhada crucial está ficando cada-vez-mais
lá para trás, enquanto o caminho-errado se alarga à nossa frente e se acelera
sob nossos pés a cada dia que corre, e não adianta ir à janela, fumar um
cigarro, jorrar chuveiro frio, vestir roupa limpa, ir à geladeira, raspar a
barba desse rosto que parece um terreno baldio, arreganhar os dentes como se
alguém estivesse filmando aquilo com uma câmara, vai ver que estão, vai ver que
enquanto eu dormia já estamos no século das coisas pensantes, da casa
inteligente, o espelho é uma placa transmissora, o interruptor é um microfone
embutido, e num plano superdimensional existem criaturas com três cérebros e
onze pseudópodos se divertindo com a minha neurose, ou talvez as criaturas nem
sejam essas, sejam meros sujeitos iguais a mim, aqueles do colégio, os que me
cobriam de tapa no recreio e me cravavam um lápis ameaçador nas costelas
durante a prova exigindo as respostas, e respostas é o que não tenho para lhes
fornecer, muito menos agora, ensaboado imóvel diante do espelho e pensando em
cortar os pulsos com o prestobarba, bela maneira de começar o dia, um dia igual
a todos os outros, nem melhor nem pior, um dia que começa como todos e que
(tomara, tomara) terminará como todos, no travesseiro suado, no escuro final, no
instante de fechar os olhos exaustos de ver e pedir que não seja aquela a
última vez, já que a vida é um pesadelo do qual ninguém quer despertar.