(ilustração: Vincent Ward)
Deve ser um desses itens
pesquisados e classificados pelos antropólogos e pelos estudiosos de narrativas
orais. É o que eu chamaria uma Figura de Narrativa (no sentido em que falamos
de figuras de linguagem), e pode ser nomeada assim: Fuga da Prisão Mediante Desenho ou Objeto.
É quando, em tantos desenhos
animados do Cartoon Network ou do Nickelodeon, o personagem pega um lápis ou
pincel qualquer, desenha na parede branca uma porta, abre-a, e desaparece
através dela. A fuga mediante um desenho que um prisioneiro faz na parede de
sua cela, e que acaba abrindo um portal por onde ele pretende fugir. Ou
mediante um objeto recebido ou feito por ele mesmo.
Como no conto “Histórias
Fantásticas” de Marco Denevi (em Falsificaciones, Buenos Aires:
Corregidor, 2007. Tradução BT):
HISTÓRIA FANTÁSTICA
Conta Frei Jerônimo de Zuñiga, capelão da
prisão do Bom Socorro, em Toledo, que no dia 7 de junho de 1691 um marinheiro
natural das Índias Ocidentais, de nome Pablillo Tonctón ou Tunctón, de raça
negra, condenado ao auto-de-fé por bruxaria e outros crimes contra Deus,
escapou do cárcere e de ser queimado vivo pedindo aos que o vigiavam, três dias
antes de marchar para a fogueira, uma garrafa e os elementos necessários para
construir um barco em miniatura e guardá-lo dentro da garrafa de vidro. Os
vigilantes, mesmo sabendo que o tempo que restava ao réu era muito breve, não
fizeram objeção. Ao cabo de três dias o diminuto navio estava terminado no
interior do vidro. Na manhã marcada para a execução via auto-da-fé, quando os
membros do Santo Ofício entraram na cela de Pablillo Tonctón, a encontraram
vazia, assim como a garrafa. Outros condenados, que esperavam sua vez de
morrer, afirmaram que na noite anterior haviam escutado um ruído como de velas,
chapinhar de remos, vozes de comando.
A fuga urdida pelo personagem de
Denevi utiliza uma garrafa, quase como uma metáfora para uma “bolha” de
espaçotempo dentro de um continuum maior. Um caminho de fuga por onde o navio
miniatura conseguiria sumir por completo.
Essa história sugere que o objeto
artístico (ou de artesanato) pode ser também considerado um tipo de processo
encantatório, capaz de produzir um esgarçamento da realidade para permitir
acesso a outro plano.
Outra história parecida que
encontrei foi no blog de Bárbara Lopes (São Paulo, 7-11-2017).
É uma adaptação de Francisco
Serrano para a lenda da “Mulata de Córdoba”, no livro Contos de Assombração
(Ática/co-edição latino-americana).
Diz a lenda que, há mais de dois séculos,
viveu na cidade de Córdoba, no Estado de Vera Cruz, no México, uma bela mulher:
uma jovem que nunca envelhecia, apesar dos anos.
Chamavam-na de Mulata. (...) As pessoas
comentavam os poderes da Mulata e diziam que se tratava de uma bruxa, de uma
feiticeira. Alguns garantiam tê-la visto voar pelos telhados e afirmavam que os
seus olhos negros lançavam olhares satânicos enquanto ela sorria com aqueles
lábios vermelhos e aqueles dentes alvíssimos. (...)
O fato é que, certo dia, levaram-na de
Córdoba e prenderam-na nos sombrios cárceres do Tribunal da Inquisição, na
Cidade do México, acusada de bruxaria e satanismo. Foi julgada e condenada à
morte.
Na manhã do dia em que seria executada, o
carcereiro entrou no calabouço da Mulata e ficou surpreso ao contemplar numa
das paredes da cela o desenho do casco de um barco, feito a carvão pela
feiticeira, a qual lhe perguntou sorrindo:
- Bom dia, carcereiro. Poderias tu me dizer
o que falta a este barco? (...)
- Por que me perguntas? Falta-lhe o
mastro.
- Se é isso o que lhe falta, isso ele terá -
respondeu ela misteriosamente.
A situação torna a se repetir, e a cada
vez o carcereiro sugere algo que está faltando, e ela aperfeiçoa o desenho. No
final, ela diz:
- O que falta ao meu barco?
- Infeliz! - respondeu o carcereiro. - Põe a
tua alma nas mãos de Deus Nosso Senhor e arrepende-te dos teus pecados. Nada
falta ao teu barco, a não ser navegar. É perfeito!
- Pois se assim quiseres, se nisso puseres
empenho, ele navegará. E para muito longe...
- Como assim? Quero ver!
- Pois veja! - disse a Mulata e, rápida como
o vento, pulou no barco. Este, devagar a princípio e depois rápido e a toda
vela, desapareceu com a bela mulher por um dos cantos do calabouço.
Esta versão usa basicamente a
mesma idéia de desfecho, mas em sua preparação há o detalhe de que é o
carcereiro, voluntariamente ou não, que instrui a mulher na construção de seu
instrumento de fuga. Parece até uma consultoria: “Falta o mastro... falta isto...
falta aquilo...”
Há um poema de autor angolano em
que a um navio em alto mar acontecem várias peripécias, ele afunda, os
marinheiros ficam todos bracejando na água para se manter à tona, “e nesse
instante o grumete / tira no bolso o navio / e põe-no outra vez na rota”.
Não é a mesma figura narrativa
dos outros (um desenho que serve de portal) mas um choque repentino entre
dimensões e proporções incompatíveis (o navio saindo do bolso), que serve como deus ex machina e também como aquilo que
Kim Stanley Robinson primeiramente chamou de “slingshot ending”, o “final
catapulta”, onde as últimas frases jogam a história para amplitudes e dimensões
nunca imaginadas; e o livro acaba ali.
Reencontrei um pouco desse tema
milenar (o prisioneiro que abre um caminho “simbólico” de fuga na parede da
cela) no filme de John Carpenter O Enigma
do Outro Mundo (“The Thing”), quando um dos cientistas (suspeito de ter
sido absorvido pelo ser alienígena) é trancado num dos setores da base militar.
Algum tempo depois os outros militares vão checar, e descobrem que ele cavou um
túnel e abriu embaixo do aposento um enorme porão onde já está com uma pequena
nave espacial quase pronta.
O arquétipo inconsciente por
trás dessas imagens é que não adianta prender alguém, ele será capaz de dar um
salto por cima das paredes e do teto, como um cavalo no xadrez, e aterrissar do
lado de fora, mediante um curto trajeto em outra dimensão.
Por impossível que pareça, esse
recurso revela um permanente temor (para os guardas) e uma tenaz esperança
(para os prisioneiros). E lembra a frase de Octavio Paz: “Basta a um homem
prisioneiro fechar os olhos para que tenha o poder de fazer explodir o mundo.”