quarta-feira, 31 de julho de 2019

4489) Santa Helena, o cordelista pop (31.7.2019)




Na terça-feira dia 30 participei de um evento na Fundação Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), onde se encontraram pesquisadores e poetas populares. Foi a doação, para o acervo da FCRB, do material reunido em vida pelo poeta Raimundo Santa Helena, falecido no ano passado.


Santa Helena foi uma figura muito conhecida nos meios literários do Rio de Janeiro, porque estava presente, divulgando a poesia do cordel, em todo tipo de evento ligado à literatura: coquetéis, lançamentos, palestras, simpósios, noites de autógrafos... 

Foi em alguma ocasião assim que vim a conhecê-lo. Vi que estava vendendo cordéis, me aproximei para olhar, comprei um ou outro, ele perguntou de onde eu era, e aí engatamos uma conversa boa, porque tínhamos muitos amigos em comum.

Anos depois recebi de Joseph Luyten, coordenador da coleção de cordel da Editora Hedra (São Paulo) a encomenda de fazer a antologia de Santa Helena. Tivemos alguns encontros, sempre à tarde, no jardim e nas lanchonetes do Museu da República. Eu levava o gravador e ele falava, falava, falava...


Santa Helena era um irresistível (e irrefreável) contador de histórias. Na época desse trabalho ele estava com 75 anos e era um dínamo de energia. Andava sempre com uma enorme bolsa cheia de folhetos, livros, panfletos, manuscritos, cadernos. E era um propagandista incansável do próprio trabalho: andava sempre com enormes folhas plastificadas onde reproduzia documentos, diplomas, certificados...

Uma vez perguntei “pra quê isso tudo” e ele disse que na cultura oral as coisas somem com muita facilidade, e que por isso ele fotografava e xerocava tudo, botava nome e data em tudo, numerava os folhetos...

Os folhetos dele eram um caso à parte. Leitor atento do Pasquim e talvez de outras publicações da poesia marginal dos anos 1970-80, ele criou um estilo próprio de cordel, envolvendo colagem, textos, datilografados, montagem de fotos, desenhos trechos manuscritos.


O cordel tradicional era impresso nas antigas máquinas de tipos móveis, onde as letras são pecinhas de metal, soltas, que vão sendo enfileiradas uma a uma para formar cada palavra. Santa Helena fez o cordel da época do fotolito, onde bastava encher de textos recortados uma “prancha” de papel, fotografá-la e reproduzi-la. Isso dá aos seus cordéis um perfil único, que ninguém até agora (que eu saiba) imitou.


Foi também um dos raros poetas a fazer cordel traduzido em outras línguas para vender aos turistas. Em todo evento internacional que acontecia no Rio (como a “Eco-92” ou “Rio-92”), lá estava ele vendendo e recitando em inglês. Marinheiro na época da II Guerra Mundial, ele viajou pelo mundo, passou algum tempo nos EUA, falava inglês com um desassombro que eu desde então procuro imitar, e recitava sextilhas tipo:

Engineer André Rebouças
at one hundred years ago
wrote about Amazônia:
“agriculture”… now we go
to discuss concerning forest
millions of trees over there still rest
to save the world of a blow…
(“Brazilian Amazônia”)

Ou então, no folheto “Don’t kill the President / Não matarás o Papa”:

Brazilian pulp writing
runs the world through the gates.
In dark space we are lighting
wherever there’s classmates
to listen to our message
as a dawn-pop-image
going far beyond the States.

Santa Helena morava numa casa humilde em Madureira; ele e a esposa Yara morreram com alguns meses de intervalo. Dois filhos estão servindo à Marinha, como ele fez, e sua filha Ynah esteve presente na Casa de Rui Barbosa, com o marido Jorge Simas, para fazer a doação do material em nome da família. Poetas e pesquisadores deram seus testemunhos pessoais, coordenados pela profa. Sylvia Nemer, que há anos vinha articulando a transferência deste acervo.


Para quem não sabe, a Casa de Rui Barbosa tem uma das maiores coleções de cordel do Brasil. Anos atrás fui um frequentador assíduo dessa biblioteca, ou “cordelteca”, como já se diz hoje em dia. Agora não preciso mais, porque grande parte da coleção já pode ser consultada online. Isso nos permite, sem sair de casa, passar a noite lendo pelejas de Costa Leite, romances de Delarme ou gracejos de Leandro, apenas clicando neste link:


O prefácio que fiz para a antologia da Editora Hedra conta muitas histórias de Santa Helena, e tenta situar sua obra, tão pessoal, tão peculiar, não apenas no contexto do cordel mas no contexto da imprensa alternativa carioca dos anos 1970-80. Mais do que um romancista inventor de fantasias ou um poeta lírico, ele foi um poeta-repórter, um indivíduo intensamente ligado no momento presente.










domingo, 28 de julho de 2019

4488) Dicionário Aldebarã XVIII (28.7.2019)




(ilustração: Hundertwasser)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Stóleo”: certas premonições que demoram a se confirmar, voltam a ser revisadas e reconstituídas de vez em quando, e acabam se transformando num evento perpetuamente adiado, parte integrante da vida da pessoa.

“Nakrunium”: grupos de leitores que se comprometem a toda semana passar adiante um livro para o próximo da lista, e receber um livro do membro que vem antes.

 “Zarbunz”: troca de carícias físicas, sem intenção sexual, entre pessoas que se conhecem profundamente e querem apenas curtir a proximidade uma da outra.

“Argobann”: qualquer recipiente usado para aparar a água que pinga de uma goteira, de uma torneira que está vazando, etc.  Por extensão, pessoas compassivas que se dispõem a escutar queixas e lamentações de alguém que precisa desabafar.

“Ablanim”: cartões metálicos redondos, cobertos por uma película com polarização química que mantém gelados os copos de bebida colocados sobre eles.

“Chissode”: pequenos epitáfios manuscritos, personalizados, que os amigos deixam no túmulo de uma pessoa querida sempre que vão visitá-lo.

“Maltomar”: diz-se da morte de certas pessoas onde nunca se poderá saber com certeza se foi morte natural, acidente ou suicídio, e que precisam sempre ser abordadas com um máximo de cautela e respeito.

“Raffikam”: pequenos retalhos de pano úmido que algumas pessoas colocam na quina da mesa, durante as refeições, panos que elas pegam e passam sobre a madeira nua da mesa para ir recolhendo os farelos de comida.

“Weruss”: o estado mental de quem, diante de um estresse aparentemente esmagador, consegue juntar forças e manter uma atitude permanente de que tudo está indo muito bem.

“Lodenz”: grupos de amigos que se reúnem periodicamente para lembrar os velhos tempos, e a cada reunião fazem um depósito numa “caixinha”, a qual deverá servir de fundo de ajuda para qualquer um que estiver precisando.

 “Fratuls”: livros com pequenos bolsos disfarçados no interior da encadernação, que servem para esconder documentos ou dinheiro.

“Vontersez”: minúsculos chalés que a maioria das casas de Aldebarã tem no fundo do seu quintal ou pátio interno, e que não pode ser ocupada pela família, devendo servir de alojamento gratuito para viajantes, que ali se hospedam em troca de ajudar nas tarefas da casa, por um prazo limitado de tempo.

“Conluvig”: pequenas peças de corda, em tamanhos variados, com prendedores de metal nas duas pontas, usadas para firmar bagagens ou outras cargas ao serem transportadas.

“Saidop”: grupos de três acontecimentos relacionados entre si que as pessoas costumam usar como argumentos para justificar um conceito, uma teoria, uma opinião, uma intuição aparentemente esdrúxula. Podem variar desde associações de idéias solidamente lógicas e argumentadas até disparates que provocam o riso.

“Orau”: cerimônia em que de tantos em tantos anos as pessoas começam a transferir suas posses para parentes ou amigos próximos, durante um almoço ou jantar formal, numa antecipação da herança que deixarão ao morrer.

“Arani”: a tradição de dar nomes próprios a cada objeto da casa: pratos, talheres, cadeiras, cortinas, para que cada um deles tenha sua individualidade e possa ser distinguido dos demais.

“Pargass”: pequenos códigos que os casais criam entre si, em que certas palavras ou nomes de pessoas são trocados por palavras comuns, para que eles possam conversar diante de outros sem que se perceba o verdadeiro conteúdo do que dizem.

“Zertend”: pequenos doces esféricos à base de frutas, envoltos em papel coloridos, que quando dados de presente a alguém devem ser comidos na hora, endo substituídos por uma pedrinha do mesmo tamanho, para que o presente possa ser tanto saboreado quanto guardado de lembrança.






quinta-feira, 25 de julho de 2019

4487) "Novas Cartas dos Sertões do Seridó" (25.7.2019)



Estou emergindo agora da leitura de Novas Cartas dos Sertões do Seridó, de Paulo Bezerra “Balá” (edição do autor, Natal, 2009), que me foi presenteado por Jessier Quirino, um entusiasta da obra do autor: “Imagine Elomar escrevendo memórias”, disse ele.

Paulo Bezerra era de Acari, na rica região do Seridó, que o Rio Grande do Norte espertamente subtraiu à Paraíba no século 19. Médico e fazendeiro, membro da Academia Norte-Rio-grandense de Letras, ele escreveu ao longo de anos essas cartas publicadas na imprensa de Natal, descrevendo, com olho de memorialista e com precisão de etnógrafo, aquilo que a gente chama “os usos e os costumes” de sua região.

Gosto de ler memórias literárias, não necessariamente aqueles livros onde um sujeito faz sua auto-biografia, mas os livros escritos por quem viveu numa época e num lugar bem específicos, e sente a necessidade de contar o que viu e viveu, porque é importante. A regras de comportamento, os modos de plantio e colheita, as histórias passadas de velho para moço, os pequenos usos da vida diária.

Em 1958 que foi ano de seca malina, um meu irmão abriu o polegar esquerdo com uma cutilada. O sangue corria franco e não havia uma meizinha para estancar a sangria como o pó do café, o esterco do jumento, o leite do pinhão, a rapa da favela ou do carnal do couro curtido. Então um companheiro de trabalho – que ali todos eram iguais – disse assombrado, no vexame: “Seu Gonzaga, só tem um jeito: é cabelo” e o outro foi logo lhe cortando a trunfa com a faca afiada e envolvendo o ferimento. Foi santo remédio. (p. 90)

Paulo Balá descreve com segurança as menores coisas da vida prática, e sempre no estilo severo e preciso do sertanejo. Por exemplo, eu sei o que é um chocalho, toda vida soube. Mas redescobri o objeto na descrição dele:

O chocalho é uma espécie de sino feito com folhas de ferro e depois banhadas com latão e bronze ou bronze e cobre, para ser pendurado no pescoço dos animais, por uma tira de sola curtida, com uma extremidade dobrada – a cabeça – e a outra ponta afiada para correr na fenda da cabeça, dando-se um nó – nó especial de marra -, graduando segundo a grossura do pescoço, invenção que veio de longe, das bandas de lá. Também a marra pode ter uma só largura e ser atacada com fivela. (...) Costuma-se pôr chocalho em reses mansas que apascentam as outras em torno de si. Rês arisca, velhaca e braba bota o rebanho a perder, pois, ao correr, corre tudo. (p. 174)

“Estilo literário” não é floreio, não é enfeite: é o uso da linguagem para construir idéias, evocar imagens, fazer emergir emoções. Paulo Balá escreve com a clareza de quem ergue uma parede de casa de fazenda.

Curiosamente, uma obra que me veio à memória durante a leitura do livro dele foi Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, de Robert M. Pirsig, onde o autor explica que se você for capaz de cuidar de uma moto deve ser capaz de escrever, e vice-versa.

Essa cultura, esse estilo sertanejo é adquirido talvez a duras penas (ele se queixa da escassez de livros em casa, na sua meninice), mas com critério e determinação.

No livro de Phelippe e Teophilo Guerra – “Seccas Contra a Secca” – tomado por empréstimo por meu pai (1891-1959) e que mandou copiá-lo de forma manuscrita, a bico de pena, tinta de tinteiro e mata-borrão, cópia feita por Noêmia Emília de Lucena e terminada a 7 de janeiro de 1954, cobrindo 792 páginas de caderno pautado, estavam as informações daquele ano.  (p. 29)

Nas memórias de Paulo Balá não se vê, felizmente, aquela nostalgia sentimentalista que tantas vezes acomete os memorialistas nordestinos, sempre prontos a afirmar que tiveram a mais feliz infância, a mais harmoniosa família, a mais rica fazenda...

A emoção corre por baixo do texto, nas entrelinhas. Como nesta carta que ele transcreve, escrita na velhice por Josefa Cunha de Medeiros (1926-1990), contando como foi seu casamento e sua mudança para a Fazenda Pinturas:

Casei no dia 25-02-48. Chegamos nas Pinturas a cavalo, às 5 horas da tarde., acompanhados por José Pipiu, Gilvan de Gil e Clidenor e às 6 horas chegaram 22 vaqueiros. Depois do jantar, e de mulher só havia eu, Zezé leu uma despedida em nome dos vaqueiros e de seu Silvino e Dona Maria. Não conhecendo a casa das Pinturas, fiquei parada com a sua beleza.

Ainda gravados na minha memória os nomes das vacas: Curimã, Atalaia, Ponta Baixa, Bargadinha, Quixaba e Caracol; dos jumentos: Estrela e Mourão; dos burros mulos: Mocinha, Melada, Charuto, Taruga, Moreno e Cutia, que morreu com 38 anos, e dos vaqueiros: Zé de Agostinho, Isaac, Alaor, Edilson e outros tantos que esqueci.  (p. 85)

Por trás de uma recordação tão nítida, tão controlada, pulsa toda uma noveleta de Corpo de Baile.

O autor recorda a chegada gradual da modernidade tecnológica nos sertões:

O rádio – e talvez por aqui tenha sido o primeiro a ser instalado em sítio – foi posto sobre uma banca num dos salões da casa o qual até hoje é chamado de “salão do rádio”, como há o “dos vaqueiros”, onde os vaqueiros dormiam, o “de pedra” por ter o piso de pedras vindo do Sabugi em carro de boi e o “das cadeiras”, lugar de receber eventuais visitas. Da antena, protegida com isoladores de vidro, um de cada lado e esticada entre dois barrotes acima do telhado, descia o pendente. A escuta das estações, todas distantes, dependia da qualidade do tempo, do pipocar das descargas elétricas: os jornais falados com notícias da Segunda Guerra Mundial – batalhas, avanços e recuos – e, em 1939, a transmissão de eventos do Congresso Eucarístico Nacional, realizado no Recife.  (p. 139)

Paulo Balá tem o cuidado de colocar após a menção a cada nome de pessoa seu ano de nascimento e de morte. Cada menção é uma lápide, é a chancela de uma história completa de vida. Gosto desse memorialismo onde o autor não se derrama em minúcias narcisistas a respeito de si próprio – escreve sobre o que o cerca, escreve sobre o que viu, o que testemunhou, e, a depender de como escreva, está ele todinho em cada frase.



(Paulo Bezerra "Balá", 1933-2017)








sábado, 20 de julho de 2019

4486) A Lua foi conquistada afinal (20.7.2019)





A data de 20 de julho marca este ano o cinquentenário da descida do homem na Lua. Neil Armstrong e Buzz Aldrin foram os dois primeiros seres humanos a caminhar naquela poeira de milhões de anos “que cheirava a pólvora queimada”, disseram eles, após muitas tentativas (ainda na espaçonave) de limpar o finíssimo pó cinzento aderido aos seus trajes espaciais.

Eu estava perto de completar 19 anos naquele dia histórico, e por essas ironias do destino não assisti o pouso pela TV. Estava tocando com minha banda de rock no Recife naquele dia.


Conto essa história neste meu artigo para a revista “Kurumata”:



Já leitor inveterado de ficção científica, eu acho que via naquilo tudo uma dimensão que muita gente ao meu redor não via. Para muitos, era apenas uma façanha como descobrir a América ou chegar ao Polo Norte; uma aventura arriscada, movida a tecnologia e uma certa coragem suicida.

E uma aventura movida a política, porque era ainda a época da Guerra Fria, da corrida tecno-militar entre os EUA e a URSS. Seria (se tudo desse certo) uma vitória esmagadora dos norte-americanos, e todos torcíamos por eles.

Até eu – porque embora estivéssemos vivendo um período brutal da ditadura militar, com o AI-5 recentemente imposto à população, nem eu nem meus amigos tínhamos a menor simpatia para com aquela União Soviética igualmente ditatorial, burocrática, truculenta com seus cineastas e escritores.

Melhor torcer pelos norte-americanos, que pelo menos tinham um pouco mais em comum conosco, pensava todo mundo ao meu redor.

Ou (pensava eu) melhor considerar aquilo uma vitória não de um país, mas de toda a Humanidade. Era um planeta que pela primeira vez tocava fisicamente em outro; não era um país. Nós, brasileiros, estávamos pousando ali também.

A transmissão ao vivo, em tempo real, coisa nova naquela época, criava um laço supra-nacional entre todos os bilhões de pessoas que acompanhavam a aventura. A televisão nos unia num momento que, descontadas as oscilações de fuso horário e os inevitáveis delays de transmissão, podia ser considerado um “Agora” universal. Além fronteiras.

E aquele fato transcendental acabaria servindo também como argamassa de destinos individuais, dando à descida na Lua aquele status de fato unificador, que nos leva a perguntar a alguém: “Onde estava você quando aquilo aconteceu?”.

Durante alguns anos tomei notas para um conto que se intitularia justamente “Onde Estava Você?”, e que seria uma reflexão sobre esse eixo de simultaneidade entre vidas individuais, produzido por um fato de amplitude planetária.

Pensei em três casais de gerações sucessivas, numa mesma família. Em 1945, o avô e a avó do narrador escutam a notícia da explosão da Bomba de Hiroshima. Em 1969, o pai e a mãe dele assistem na TV a descida do homem na Lua. E em 2006 ele conta onde está quando uma raça alienígena faz seu primeiro contato explícito com o nosso planeta.


O conto ficou se chamando “Príncipe das Sombras”, está no meu livro A Espinha Dorsal da Memória (1989), e diz a certa altura:

...um dia ele perguntou a ela onde estava quando a Bomba caiu sobre o Japão. Ela respondeu que tinha sabido da notícia através do rádio; tomava banho de chuveiro e o rádio estava ligado na sala, ela ouviu a voz urgente do locutor e captou alguma frase, não percebeu todos os alcances do fato mas sentiu que tinha a ver com o fim da guerra, saiu à sala gotejante, envolta na toalha, mas o rádio já retornava à música e a mãe vinha em defesa do tapete. (...) Quanto a ele, que tinha vinte e quatro anos naquele agosto, estava num restaurante com alguns amigos, quando outro amigo entrou a passos largos, puxou uma cadeira e largou na mesa a notícia, o peito ofegante, os olhos brilhando, e não porque estivesse a pensar no efeito daquilo sobre o moral nipônico, mas porque era possível, era real.


(...) Em 20 de julho de 1969 uma moça de cabelos louros ligou a televisão para ver o que estava passando (dividia um apartamento com duas amigas, ambas tinham saído, era domingo) e viu uma sucessão de imagens que não entendeu bem, entendeu a voz que as acompanhava e era a de Gilberto Gil, que àquela época era seu cantor preferido; a voz entoava versos que ela não conhecia: “Momento histórico... Simples resultado do desenvolvimento da ciência viva... Afirmação do homem, normal, gradativa, sobre o universo natural – sei lá que mais...”  A canção a levou à poltrona, da qual não mais se levantou durante as horas seguintes, até terminar a transmissão da primeira descida do homem na Lua. A moça ainda não era minha mãe; ainda se passariam vários anos até que um rapaz de cabelos escuros e boca maliciosa lhe perguntasse: “onde estava você, quando, etc.?” Após a resposta, ele disse que naquele dia estava também diante da televisão, a sala cheia de gente, a cabeça cheia de fumo, o rosto lavado em lágrimas, vingativamente satisfeito, como se aquilo fosse um triunfo pessoal.

A ficção científica nunca me ensinou a odiar raças alienígenas, mas me ensinou a pensar na humanidade como uma coisa só. Retalhada por distâncias geográficas, históricas e culturais, desunida por competições econômicas e políticas; mas uma coisa só. Quem pisou na Lua naquela tarde de domingo foram os aborígenes australianos, os camponeses do México, os pastores do Cáucaso, os tutsis e hutus de Ruanda, os roqueiros da Escandinávia, os pirangueiros-de-porta-de-bodega do bairro do São José, em Campina Grande, que certamente estavam vendo tudo e fazendo piada.

Gilles Deleuze tem uma definição de Esquerda x Direita que para mim vai muito mais além dessa distinção meramente política. Diz ele que quem é de esquerda se preocupa primeiro com a humanidade, depois com seu próprio país, e só depois com sua cidade e as pessoas que o cercam. E quem é de direita pensa acima de tudo em si mesmo e nos seus, só depois cuida dos interesses do país, e provavelmente não está nem aí para a humanidade. (Estou parafraseando, claro.)

Eu tiraria os termos “esquerda” e “direita” da discussão e diria que essa oposição talvez seja a mais importante de todas no planeta Terra de hoje, quando é o próprio planeta que está ameaçado de entrar em colapso, e com esse colapso acabar com as guerras dos países, a farra das "famílias" e a própria existência da civilização.

Se esta não for a questão mais importante do mundo hoje, neste 20 de julho de 2019, qual será?















quarta-feira, 17 de julho de 2019

4485) Quatro dias de Flip (17.7.2019)





Esta foi minha terceira ida à Flip, mas a primeira como convidado oficial. Estive lá no ano em que o homenageado foi Graciliano Ramos, e depois quando a homenageada foi Ana Cristina César.

A primeira ida me rendeu esta crônica, “Baleia na Flip”:


A Flip é criticada em alguns setores por ter um viés meio elitista – é um evento caro, numa cidade onde um prato com seis bolinhos de bacalhau custa 50 reais. “Uma bolha de intelectuais ricos”, dizem por aí. 

Verdade, mas essa bolha retangular se rompe quando a gente sai do Centro Histórico (que tem algo de Parque Temático Vintage-Futurista) e vai para a Paraty real, aquelas avenidas cheias de lotéricas, malharias, agências bancárias, sapatarias, postos de gasolina, açougues, mercadinhos, e botequins mainstream, com cerveja a preço de cerveja, tiragosto a preço de tiragosto.

É uma bolha permeável, cuja membrana fica a cinco minutos de caminhada.


Fora isso, me parece que a programação cultural está cada vez maior, mais variada e mais participativa. Mesmo com acesso livre à Tenda principal, foi o ano em que vi menos palestras, porque lá fora as oportunidades se multiplicam.

E outra coisa – muitos vão a passeio, eu vou a trabalho. Fiz duas mesas que me pareceram ótimas, a primeira sobre Literatura de Cordel, com Jarid Arraes e Sofia Nestrovski, e a segunda sobre Literatura Fantástica, com Mariana Enríquez e Rita Mattar. Sempre com a conversa fluindo bem, e público atento. Só tenho o que agradecer a todas elas.


Tive um almoço muito proveitoso com meus amigos da Companhia das Letras: Fernando Rinaldi, Marcelo Ferroni e Luara França, estes últimos parceiros antigos de vários projetos. E há mais idéias botando a cabeça na linha do horizonte.

Reencontrei amigos antigos, que não via há bastante tempo: Zuza Homem de Melo e Ercília, Lincoln Cunha e Giovana Damaceno, Juca Novaes (leia-se Festival de Avaré), Vladimir Carvalho e Lucila Garcez, Mônica Maia...

Troquei livros com o cordelista paraibano Paulo Cavalcanti, que com sua simpatia e seu chapéu de couro, à entrada da ponte, tornou-se parte da paisagem de Paraty. Gravei entrevistas para grupos de jovens que a cada ano me parecem mais jovens, e mais espertos.


Perdi muita coisa. Não vi algumas palestras que tinha muita vontade de ver: José Miguel Wisnik, Ailton Krenak & Zé Celso, Marilene Felinto, José Murilo de Carvalho... E os desconhecidos, claro – as novidades, as revelações, o primeiro encontro com uma voz e uma obra literária que daí em diante passam a fazer parte de nossas vidas.

Perdi a entrega do Prêmio Argos, na “Casa Fantástica”, cheia de amigos e conhecidos, mas fiquei feliz ao ler a crônica de Gerson Lodi-Ribeiro e ver que nosso fantástico continua fumegante como uma engrenagem steampunk. Perdi a palestra de Glenn Greenwald na Flipei, com toda a agitação e ameaça que a cercou, e que acabou sendo a principal faísca do choque de placas tectônicas por que o país está passando.


Perdi apresentações de amigos como Cátia de França e Chico César, lançamento de livro de José Teles. Não deu tempo de ir na casa dos poetas independentes, embora tenha tido breves encontros, sempre saborosos, com Mano Melo, Tavinho Paes, Marcelino Freire e outros.

Como já falei, fui a trabalho, e por conta de um projeto sobre Cordel que estou desenvolvendo, boa parte do meu tempo foi consumida, na sexta e no sábado, no espaço do cordel instalado na sede do Iphan em Paraty, na Praça da Matriz. Ali o tempo pára e a conversa nos arrebata numa espiral de risadas e rimas, com os irmãos Arievaldo e Klévisson Viana, Moreira de Acopiara, Severino Honorato, Dalinha Catunda, Anilda Figueiredo, Aninha Ferraz e tantos outros poetas.


A Flip é uma festa, sim, e como toda festa vale tanto pelo que ocorre no salão principal quanto pelo que se agita ao redor. Lembra o antigo e saudoso Festival de Areia paraibano, com as noites frias, a praça cheia de gente soprando bafo quente nas mãos e tomando cachaça pra esquentar, músicos de rua tocando forró ou jazz, grupos de gente-de-fora se cruzando incessantemente nas ruas, olhando com curiosidade cada placa, cada fachada, cada pedra do chão.

Foi oportuno, por parte da curadora Fernanda Diamant, escolher Euclides da Cunha como patrono. É um personagem que encarna, como poucos, as qualidades e os defeitos da nossa intelectualidade, dos nossos militares, dos nossos jornalistas, dos nossos homens de letras, dos nossos cidadãos, dos nossos cientistas.

Em sua palestra de abertura, Walnice Nogueira Galvão lembrou, e descreveu com detalhe, que as fake news não foram inventadas com a Internet, e que fervilharam também durante a campanha de Canudos, com dezenas de matérias pseudo-jornalísticas omitindo os massacres de gente indefesa e inventando uma suposta conspiração monarquista internacional que usaria Canudos para derrubar a República.


O Brasil ainda é o mesmo de Euclides, tanto o Brasil real quanto o Brasil oficial “caricato e burlesco” que Ariano Suassuna tanto citou (a imagem é de Machado de Assis). 

Os eventos literários nos servem de espelho, que alguns usam para retocar a aparência, e outros para procurar os sinais de mudança.

E como disse Euclides:

Se acaso uma alma se fotografasse
de sorte que, nos mesmos negativos,
a mesma luz pusesse em traços vivos
o nosso coração e a nossa face;

e os nossos ideais, e os mais cativos
de nossos sonhos... Se a emoção que nasce
em nós, também nas chapas se gravasse
mesmo em ligeiros traços fugitivos;

amigo! Tu terias com certeza
a mais completa e insólita surpresa
notando – deste grupo bem no meio –

que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
destes sujeitos é precisamente
o mais triste, o mais pálido, o mais feio.















segunda-feira, 15 de julho de 2019

4484) A mecânica e os adornos (15.7.2019)




Por que motivo certas histórias funcionam?  Em grande parte é por uma mecânica interna, por um conjunto de agentes e de funções que por si só envolve e surpreende o leitor, e que pode ser repetido muitas vezes, variando-se os “adornos”: personagens, época, ambiente, etc.  

Livros tão distintos quando o Dom Quixote e Madame Bovary seguem a mesma mecânica: uma pessoa se deslumbra com o mundo dos romances, tenta viver de acordo com eles, e só encontra decepções.

Inúmeras outras histórias poderiam ser escritas tendo esta situação como ponto de partida. Seriam plágio?  Não, se trouxessem uma dose suficiente de novas informações, novas variantes, outra verdade humana, outra força literária.  

Plagiar é imitar sem introduzir informação nova.

Um conto como “Missa do Galo” de Machado de Assis repousa principalmente numa situação de não-entendimento.  Seu enredo: um adolescente fica a sós durante a noite com a dona da casa onde se hospeda, uma mulher de 30 anos que é traída pelo marido. 

A conversa entre os dois é uma conversa que não ata nem desata.  O leitor é induzido a pensar que a mulher tem vontade de trair também o esposo mas prefere que o rapaz tome a iniciativa.  Ele, que é interiorano e um pouco ingênuo, não entende, e o conto se encerra sem que nada aconteça.  Numa história assim, a época, o meio social, o perfil psicológico dos personagens, tudo é adorno.  A mecânica nua e crua é: A assume certas atitudes, B não as entende, e C (o leitor) percebe tudo.

Podemos usar essa mecânica transpondo-a para outra situação.  Em vez de um rapaz inexperiente e uma mulher adulta, podemos pensar num homem maduro e uma garota esperta; em vez de 1890 no Rio, a história se passa em 2019 em Salvador.  

Ele é metido a bonitão, mas é meio conservador. A garota tem 20 anos, é liberada, faz o que quer; é sua aluna, ou amiga de sua filha. Os dois passam algumas horas a sós, conversando, e somente o leitor percebe que a menina dá todas as pistas de que quer alguma coisa com ele, chega a ser irônica, e só ele não percebe.  Não por inexperiência (como em Machado), mas porque a linguagem e os códigos de sedução das duas gerações são incompatíveis.

E no fim do conto ele se queixa de que ninguém sabe o que querem os jovens de hoje.

Alguém pode questionar: isso é plágio?  De um modo geral, não, principalmente se os novos adornos (as partes exteriores, descartáveis da história) tiverem riqueza bastante para se imporem sobre a mecânica antiga. 

Percebemos um plágio justamente quando, ao invés da mecânica, são os adornos que são imitados.  Alguém pode escrever uma história que se passa em 1890, entre um rapaz e uma mulher casada, na noite da Missa do Galo, enquanto o rapaz espera amigos que irão com ele à missa.  Não há qualquer clima de sedução entre os dois: a mulher e o rapaz ficam discutindo, sei lá, a situação política do Segundo Reinado.  E no entanto inúmeros leitores iriam imaginar que esta história é um “plágio” da história de Machado, quando na verdade é o primeiro exemplo acima que mais se parece com ela.

Muitos escritores têm facilidade para esvaziar todos os adornos de uma história alheia, perceber qual é sua mecânica, e utilizá-la numa história completamente diferente.  Se a mecânica for a mesma, então, isto é plágio?  Depende.  Muitas histórias têm uma mecânica interna muito simples, nada fora do comum, e se trocarmos os adornos há uma grande possibilidade de que os novos adornos (outra época, outra situação profissional, personagens com outra idade, outro perfil, outras características) tenham peso bastante para que a nova história possa ser considerada original. 

Na verdade, é nessas características (e na riqueza estilística) que autores como Machado de Assis baseiam suas histórias, e não na mecânica simples do enredo.  É possível que Machado tenha escrito “Missa do Galo” tendo em mente um episódio qualquer que leu de passagem no romance de alguém e que resolveu pegar emprestado para explorar a seu modo. Todo autor “original” faz isto.

Uma grande parte das obras literárias usa a mecânica de uma história já existente, mudando os adornos; ou prefere usar os adornos e dar-lhes uma mecânica completamente diversa. 

James Joyce, em Ulisses, utilizou as aventuras do herói homérico como mecânica básica, mas ao ambientá-las em Dublin e carregá-las de experiências linguísticas obscureceu essa mecânica a tal ponto que se tivesse intitulado o livro Um dia em Dublin pouca gente iria perceber a alusão ao clássico de Homero.

Quando a mecânica de uma história chama demais a atenção, é perigoso reutilizá-la, porque isto seria percebido de imediato. 

Os leitores de romances policiais sabem que há um livro de Agatha Christie em que o criminoso é justamente o personagem que narra a história, e que durante toda a narrativa finge ser inocente. Foi uma reviravolta que causou comoção e polêmicas na época de lançamento do livro, e já se disse que era um recurso que só poderia ser utilizado uma vez e nunca mais. 

No entanto, Jorge Luís Borges tem pelo menos dois contos que usam o mesmo recurso, mas em circunstâncias tão diferenciadas que a revelação final não se torna o objetivo do conto, e sim uma pequena surpresa que lança uma luz diferente sobre coisas mais importantes.  (Não direi aqui os títulos das obras; não quero privar o leitor do prazer dessa pesquisa.)


(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa (Editora Segmento, SP), número 74, dezembro de 2011)







sexta-feira, 12 de julho de 2019

4483) O que é um gênero literário (12.7.2019)




O que é um gênero literário? Basicamente, é um conjunto de regras, ou de instruções que devem ser seguidas, para que cada história escrita possa ser agrupada ao lado de outras.

Quando se trabalha dentro dos gêneros mais populares – terror, romance-de-amor, suspense, humor, pornografia, ficção científica, policial – a filiação a um gênero envolve às vezes a vontade de entrar num nicho de mercado. Pode envolver também uma paixão por parte do autor: ele gosta daquilo, ele lê toneladas daquilo, e quer escrever algo parecido com aquilo.

Meus primeiros contos foram publicados nos anos 1970 no Correio das Artes, o tradicional suplemento literário do jornal A União de João Pessoa, que agora em 2019 completou 70 anos de circulação. Uma meia dúzia de contos, que não tinham nenhum gênero específico. Um ou outro aproximava-se levemente do que chamava-se na época de realismo mágico.

Eram contos que eu escrevia porque a idéia me vinha à cabeça. Não havia nenhum interesse comercial (a publicação não era paga), nenhuma encomenda, nenhuma “expectativa do público”. Pelo contrário. Ninguém sabia quem eu era, mesmo na Paraíba.

Desses contos, lembro de “Meu irmão Jorge”, “Noturno”, “Os artilheiros perplexos”, “Agora brinque com Pedrão Colaço!”, “Relatório Policial”. Todos publicados entre 1975 e 1981. Apenas um foi recolhido em livro: “Expedição às Profundezas do Oceano”, que incluí em Mundo Fantasmo (Rocco, 1996).

Depois, por volta de 1986, comecei a publicar nos fanzines de ficção científica, principalmente o Somnium (São Paulo), dirigido por Roberto C. Nascimento. Ali publiquei as primeiras e toscas versões de contos que em 1989 seriam recolhidos no livro A Espinha Dorsal da Memória: “Mestre de Armas”, “Sympathy for the Devil”, “Catálogo de Exposição”.

Começou então uma coisa interessante: a expectativa “genérica” começou a se imiscuir na minha cabeça, porque eu sabia que os leitores dessas publicações eram da faixa ficção científica / fantasia / terror. Isso sem dúvida me ajudou a escrever – havia a noção muito nítida de um público leitor à espera, um público que compartilhava comigo um repertório de leituras e de informações. A esta altura eu havia me filiado ao Clube de Leitores de Ficção Científica, e nossos encontros eram frequentes, com discussões longas e acaloradas.

Isso é bom. Por outro lado, é ruim. Porque no Somnium e em outras publicações (Hiperespaço, Megalon, etc.) eu tinha um público atento, mas um público que, em tese, esperava ler contos de FC/fantasia/terror.

E não foram poucas as idéias de contos que me entusiasmaram, me levaram a escrever meia dúzia de páginas, mas morreram no meio do caminho. Porque eram histórias “comuns”, histórias “mainstream”, que eu jamais coneguiria publicar nos fanzines. Os fanzines eram meu único canal de publicação. Se eles não aceitassem, publicar onde? E as história morriam no meio do caminho. Porque “não eram FC”.

A FC sempre foi uma espécie de gueto, mas no Brasil ela era uma espécie de gueto sem cidade em volta, porque não havia um mercado de publicação de contos. Me refiro à época de 1986 em diante, e olha que a essa altura eu já morava no Rio de Janeiro, já traduzia profissionalmente, já tinha contatos em várias editoras, já publicara um livro pela Brasiliense (SP). Mas não tinha onde publicar contos que não fossem de FC.

Eu via exemplos disso a torto e a direito na própria FC norte-americana. Me lembro de um comentário de Fritz Leiber sobre seu excelente e premiado conto “Gonna Roll the Bones” (1967), a história de um cara que disputa uma partida de dados com o Diabo. Leiber disse que foi forçado a enfiar meia dúzia de detalhes bobos para dizer que o conto era de FC – tipo fazer o personagem olhar para o céu noturno e ver a passagem de um foguete, coisas assim.

Nesse sentido, pode-se dizer que um gênero é um conjunto de regras, ou de senhas, que simultaneamente nos dão acesso a alguns ambientes editoriais e no vedam o acesso a outros.

Uso o termo “ambiente”, em vez de “mercado editorial”, porque é preciso incluir os fanzines, as publicações independentes, a Web de hoje – que não são um mercado no sentido financeiro e profissional do termo.

Num texto na revista Locus, Gary K. Wolfe sugere (a tradução é minha):

Talvez pudesse ser um exercício útil (ou pelo menos interessante) pensar nos vários gêneros fantáticos menos em termos de territórios distintos do que em termos de poços gravitacionais – quanto maior a sua massa, mais um gênero se torna capaz de atrair objetos que cruzam sua órbita, e mais difícil se torna, para quem já está dentro dele, alcançar velocidade de escape.

É disto que muitos escritores de FC vêm se queixando durante o último meio século, mais ou menos: o gênero tem massa suficiente para atrair pessoas como George Lucas ou Margaret Atwood, mas se você já está pousado no solo , se você já é conhecido como escritor de FC, pode ser muito difícil sair dali.

Claro que não existe (ainda bem) uma definição unânime do que seja FC, de modo que o empuxo gravitacional varia de região para região.

Minha geração de leitores, por exemplo, se formou em torno de três revistas principais (para quem lia em inglês):

1) a Isaac Asimov Magazine, editada por Gardner Dozois, editor/autor de talento, com um conhecimento amplo e uma filiação sólida à tradição da FC de língua inglesa, mas com uma informação literária ampla e aberta, disposta a aceitar tipos variados de novas experiência;

2) a Analog SF editada por Stanley Schmidt, reduto da FC tecnológica, hard, pouco afeita a experiências puramente literárias, mas com conceitos exigentes de coerência interna, aventura, verossimilhança psicológica;

e 3) o Magazine of Fantasy and Science Fiction (chamado F&SF), criado por Anthony Boucher, e depois editado por Edward Ferman, Kristine K. Rusch, Gordon van Gelder, com uma abertura de gênero ainda maior que a de Dozois, assimilando o tipo de fantasia urbana contemporânea herdado das antigas Galaxy ou If.

Havia (e há ) outras boas revistas, mas estas eram as principais, em termos de circulação e visibilidade.

O “mercado” (ou “ambiente editorial”) brasileiro nunca chegou a esse grau de alcance gravitacional. Nem mesmo quando tivemos a versão brasileira do F&SF editada por Jeronymo Monteiro para a Ed. Globo de Porto Alegre (1970-71), ou a versão da Asimov, editada por Ronaldo di Biasi para a Ed. Record do Rio de Janeiro (1990-92), e que publicou um conto brasileiro em cada um dos 25 números que lançou antes de fechar.

Um gênero é definido, em geral, pelas pessoas que determinam o que vai ser publicado sob esse rótulo. A ficção científica publicada por John Campbell na década de 1940 não era a mesma publicada por Anthony Boucher na F&SF.

No Brasil, nunca houve, pela inexistência de um mercado propriamente profissional, esse tipo de imposição “gravitacional” – a não ser a que vinha de fora. Sempre trabalhamos em torno de conceitos importados, e nesse sentido a FC e o rock são muito semelhantes. Quando dizemos “estou escrevendo FC” ou “estou compondo rock”, é como se um certo número de portas se abrissem e outras se fechassem automaticamente.

E nada disso é obrigatório para quem escreve.








sábado, 6 de julho de 2019

4482) O gênio João Gilberto, 1931-2019 (6.7.2019)





A notícia da morte de João Gilberto me pegou justamente num sábado em que eu preparava um artigo sobre estilo literário. Estilo, em termos gerais.

Estilo (ia eu pensando) é um conjunto de qualidades e defeitos tão peculiares que dão um perfil único e inimitável àquele artista. Um conjunto de habilidades e limitações: coisas que ele faz melhor que qualquer um, justapostas a coisas que qualquer um faz e ele é incapaz de fazer.

Quero ser mico de circo se João Gilberto fosse capaz de me ver tocando violão (assumidamente mal) durante 2 ou 3 horas e depois tocar do jeito que eu toco. Não poderia. Ele só sabia tocar – acho eu – do jeito de João Gilberto.

Em qualquer capital brasileira há grandes violonistas de barzinho capazes de tocar igual a João e, se me vissem, igual a mim em 15 minutos. Tocam igual a Baden Powell e a Mark Knopfler, se quiserem. E por isso nunca serão outra coisa senão grandes violonistas de barzinho.

João Gilberto desenvolveu sua estética, sua batida, sua harmonização, sua emissão vocal, num meio musical extremamente exigente e vigilante, o da vida noturna do Rio de Janeiro dos anos 1950. Era um Brasil onde o conceito milionário de sucesso era apenas um vapor muito tênue. Era uma selva de qualidades conflitantes, um Brasil capaz de acolher com hospitalidade as violentas guinadas artísticas da Bossa Nova.

A grandeza de João foi a de criar um idioma musical próprio, mistura de candura, rigor e complexidade, e com isso provocar respostas diferentes em cada um dos seus discípulos. Veja-se a diversidade da obra de admiradores seus como Tom Jobim e Chico Buarque, no lado mais caretão da MPB, e como Gilberto Gil e Caetano Veloso, no lado mais carnavalesco do tropicalismo.

Todos influenciados por João, todos diferentíssimos dele, a ponto de um jovem de hoje ter dificuldade de enxergar a influência de João em muitos deles, mas nenhum deles (podemos arriscar) ousaria o quanto ousou sem o exemplo radical de João Gilberto.

Nunca fui um grande fã de João, acho que por uma questão cronológica. Tivesse nascido uns cinco anos antes e talvez a Bossa Nova tivesse me arrebatado como arrebatou tantos outros; e como o próprio Tropicalismo me arrebatou mais tarde.

Só comecei a reconhecer o papel desbravador de João quando li o Balanço da Bossa de Augusto de Campos, onde ele reconstitui vários processos desconstrutores com que João e a Bossa desinflaram a música popular operística e tenorística da época, com seus dós-de-peito, seus sentimentos porejantes de dramaticidade. Era o bolerão de Nelson Gonçalves (que continuo admirando – vejam só como são as coisas), Vicente Celestino e companhia.

A Bossa Nova varreu essa nossa música melodramática e sentimental com uma estética enxuta, simples, que raspava todos os excessos até revelar a ossatura de harmonia, melodia, ritmo e canto. Mostrava como nada daquele recheio fazia falta, e que era possível haver emoção sem sentimentalismo, força sem empostação.

Alguém disse da arquitetura de Oscar Niemeyer que ela demonstrava o quanto o concreto é leve. As harmonizações e as divisões rítmicas de João Gilberto mostravam que era possível haver uma ultra-sofisticação por trás de estruturas aparentemente simples, nuas, despojadas.

Como a poesia de João Cabral de Melo Neto e seu poeta-engenheiro que sonhava com superfícies claras, limpas, um copo dágua, uma quadra de tênis. Um “edifício crescendo de suas formas simples”.

Uma estética que correu mundo. Num trecho da contracapa de Bringin’ it All Back Home, Bob Dylan dizia: “Muitos podem gostar de um suave cantor brasileiro, mas eu já desisti de tentar a perfeição”. O álbum é de 1965, quando a Bossa Nova já pipocava nos EUA após o histórico concerto do Carnegie Hall em 1962.

Gosto é gosto, e sinto muito mais prazer ouvindo os seguidores de João Gilberto do que ele próprio, porque neles (Tom, Chico, Gil, Caetano) me atrai a exuberância, a variedade de formas, a espontaneidade melódica (muito mais do que a complexidade harmônica), a potência poética.

Os únicos discos dele que já tive foram o “Chega de Saudade”, “O amor, o sorriso e a flor” (o da capa solarizada), aquele com Astrud e Stan Getz, aquele outro da capa colorida que tem “Farolito” e outro que não lembro o nome, já na fase dos óculos, terno preto e cabelos brancos. Para mim ele é uma lição de minimalismo comparável com Erik Satie na música erudita e com Paul Klee e Miró na pintura.

E também, como todos estes, uma obra percorrida por um forte veio infantil, como de meninos que nunca cresceram e que mesmo depois de barbados continuam a brincar como se tivessem cinco anos. Este veio alimentou fortemente a Bossa Nova, com suas letrinhas ginasianas que às vezes derrapavam no simplório. Isso nunca me incomodou muito – eu fui desde o início um fã da Jovem Guarda, e nunca liguei para o infantilismo de “O Pato” ou “Lobo Bobo” porque para mim eram versos no mesmo nível simpático e brincalhão de “A Festa do Bolinha” ou “O Calhambeque”.

A própria voz de João Gilberto nunca se despregou muito da infância, era aquela voz sem muita força, de quem ainda não cresceu cabelo no peito, de quem acostumou-se a falar baixinho porque mora numa casa onde todo mundo é estentórico e tonitruante.

A casa dele era a casa cheia de decibéis onde pontificavam Cauby Peixoto, Ângela Maria, Leny Eversong e outros prodígios capazes de sustentar uma nota no ar durante o tempo de se fumar um cigarro sem filtro. Eles ensinaram a João, talvez, o valor da fala pequenininha, como uma estrela miúda que alumeia o mar.

Havia em João esse viés infantil, herdado por compositores e cantores em busca de simplicidade das coisas realmente grandes: Sidney Miller, Nara Leão, o próprio Chico Buarque com seu rosário de canções adaptadas das musiquinhas de roda e contos de fadas.

Só vim a considerar João Gilberto um gênio quando li o Chega de Saudade de Ruy Castro, agora já nos anos 2000, e finalmente entendi um pouco desse personagem por trás do cantor que parecia desafinar e era mais afinado que todo mundo, que parecia atravessar o ritmo e na verdade estava com as rédeas do ritmo na mão o tempo todo.

Um gênio raramente morre feliz. Um gênio raramente tem uma vida à altura da beleza que deixou para os outros. Eu faço uma distinção (bem minha, bem pessoal) entre “gênio” e “grande artista”. Um gênio não é simplesmente alguém mais inteligente do que o resto. É um cara anormal, no sentido de que tem (olha aqui a definição de “estilo”, mais uma vez) uns certos talentos e umas certas limitações numa combinação que ninguém mais tem, e num grau de intensidade que poucas pessoas em volta dele conseguem tolerar.

Chico Buarque, Tom Jobim, Edu Lobo, Caetano e companhia, todos são artistas excepcionais, mas nenhum deles é um gênio. São sujeitos iguais a mim e a você. Com a diferença de que compõem, escrevem cantam, etc. melhor do que eu ou você.

Um gênio é um sujeito fora de esquadro, fora do cotidiano normal de outras pessoas. Um gênio é alguém que incomoda, que provoca constrangimentos, que não é fácil de manobrar. Pode ser capaz de ingenuidades terríveis, de crueldades desnecessárias, de extremos egoísmos e generosidades extremas (tão extremas que nos deixam desconfortáveis). E não o faz pensando nas manchetes dos jornais nem na conta bancária. Faz porque isso é parte de sua formatação deformada, que o torna intensamente brilhante para algumas coisas e um tosco total para outras.

Renoir, Cézanne, Portinari, não eram gênios, eram grandes artistas. Gênio era Van Gogh. Um gênio é sempre alguém que você pensaria duas vezes antes de aceitar como hóspede em sua residência. João Cabral, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, não foram gênios (por esta minha nomenclatura), foram grandes poetas. Gênio era Arthur Rimbaud, era Edgar Allan Poe.

As maluquices de João Gilberto são conhecidas demais para repisar aqui. Fechado em si mesmo, sem ver ninguém e ao mesmo tempo dando telefonemas de cinco ou seis horas seguidas para pessoas que mal conhecia, ele seguia esse destino inapelável dos que não conseguiriam ser menos excêntricos – mesmo que quisessem, mesmo que achassem possível, mesmo que percebessem que as outras pessoas são diferentes deles.

Um gênio raramente tem uma vida pacata, uma morte tranqüila. Raramente é feliz, mesmo quando por um golpe de sorte é festejado em vida. Admiramos a obra que produzem, mas jamais invejaríamos a vida que gerou essa obra.

São os grandes solitários, os que brilham muito mas enxergam pouco. São números primos: aqueles que só se dividem por si mesmos, e pela Unidade.